Título: ÓRFÃOS DO PODER PÚBLICO
Autor: Jefferson Péres
Fonte: O Globo, 05/03/2005, O País, p. 7

O movimento republicano, de caráter transpartidário, em articulação no país, visa à defesa dos valores que fundamentam a idéia de República, entre nós formalmente proclamada, mas nunca efetivamente instaurada.

Por se tratar de valores, são importantes por si mesmos, mas é preciso não perder de vista que, consubstanciados em princípios, observados na prática político-institucional, constituem condição necessária à transformação econômica e, principalmente, social do país.

Tem-se como objetivo eliminar, num prazo historicamente curto, o mais grave e desafiador problema da sociedade brasileira, que é a defasagem existente entre, de um lado, o relativamente elevado nível de desenvolvimento econômico e, de outro, o elevadíssimo percentual de exclusão social.

Parte-se do diagnóstico que vê a raiz do nosso apartheid social na persistência do Estado patrimonialista, paralisado pelo estamento político-burocrático, que o utiliza secularmente em proveito próprio, tal como revelado pela análise percuciente de Raymundo Faoro.

Se o diagnóstico estiver correto, igualmente correta estará a terapia prescrita, na forma da republicanização do Estado nacional em todos os níveis. Entendendo-se como tal o enraizamento, no funcionamento das instituições e nos costumes políticos, dos princípios republicanos a seguir relacionados, em lista exemplificativa e não exaustiva.

O princípio montesquiano da independência dos poderes, hoje uma ficção, mercê da hegemonia do Executivo, convertido num superpoder, em face do Legislativo e do Judiciário, reduzidos a subpoderes.

O princípio da igualdade perante a lei, burlado na prática, pela dificuldade que tem a maioria de acesso à prestação jurisdicional.

O princípio da igualdade de oportunidade, um engodo para a grande maioria, pela falta de universalização da educação pública de qualidade em todos os níveis.

O princípio da legitimidade, violado pela persistência de vícios que contaminam todo o processo, desde a falta de democracia interna nos partidos até o abuso do dinheiro e dos órgãos públicos nas eleições.

O princípio da moralidade, negado pela corrupção disseminada, com punição efetiva apenas para os criminosos despossuídos ou sem status social.

O princípio da justiça fiscal, escamoteado por uma carga tributária pesada, que recai diretamente sobre a classe média, via Imposto de Renda, e sobre os pobres, via impostos indiretos, e da qual em grande parte escapam os ricos, via elisão e sonegação.

O princípio da justiça salarial que, ao menos no serviço público, deveria limitar a dez vezes a diferença entre a maior e a menor remuneração, eliminada a distância abismal de hoje.

O princípio da austeridade, imperioso aos detentores do poder, até como exemplo aos governados, neste país de privilégios, onde se usa hedonisticamente a coisa pública, sem observância da modéstia, da sobriedade e da discrição.

Finalmente, o princípio elementar - republicano -- de garantia da vida, ausente das grandes cidades brasileiras, nas quais a insegurança e a banalização da violência fazem seus moradores se sentirem subcidadãos, órfãos do poder público.

A defesa desses princípios não pode ser bandeira de um único partido, até pela falta de credibilidade de todos eles. Haverá de ser um movimento transpartidário, numa convergência de idéias de pessoas e grupos, que poderá, futuramente, resultar ou não na criação de um novo partido.

Se esse movimento não prosperar, terá sido pela incapacidade dos seus promotores de mobilizar corações e mentes em torno da República, vista como idéia-força e símbolo, a traduzir o sentimento popular disseminado, contraditoriamente de descrença e esperança de que o Brasil será uma grande nação. Por grande, entenda-se, cheio de imperfeições, mas livre de mazelas injustificáveis.

Historicamente, em países de tradição patrimonialista, como o Brasil, onde o Estado foi privatizado, a esquerda sempre deu ênfase, equivocadamente, à estatização da economia. Nunca entendeu que muito mais importante seria promover a desprivatização do Estado.

JEFFERSON PÉRES é senador (PDT-AM).

A hegemonia do Executivo o converteuem um superpoder