Título: A NOVA ERA DOS DIREITOS AUTORAIS: MINISTRO GILBERTO GIL LICENCIOU MÚSICAS SOB A LICENÇA CC
Autor: Rachel Bertol
Fonte: O Globo, 05/03/2005, Prosa & Verso, p. 1

Inovações ainda geram controvérsias

Segundo especialista, 'creative commons' ajudam inserção da cultura brasileira no mundo

Apesar das questões que levanta, o escritor Luiz Ruffato considera "fantástico" o princípio dos creative commons, ao permitir a circulação anárquica das idéias. No entanto, o autor de "Eles eram muitos cavalos" acredita que ainda se deve conhecer melhor essas inovações editoriais.

A fim de aprofundar o debate a respeito, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional, quer convidar o advogado Ronaldo Lemos para conversar com seus alunos e colegas a respeito. Entusiasmado, ele planeja escrever com outros antropólogos uma obra coletiva na internet, sob a licença CC em sua versão mais liberal. Além disso, Viveiros de Castro vai escrever, a convite do antropólogo americano Marshall Sahlins, um livro a ser publicado sob creative commons nos EUA. Sahlins, prestigiado professor da Universidade de Chicago, fundador da editora Prickly Paradigm Press, está relançando todos os títulos de seu catálogo sob a licença CC.

- Os creative commons não batem com o copyright, mas facilitam, no sentido radical da palavra, facultando uma série de coisas que o regime tradicional bloqueia. Quero testar isso na área acadêmica. Minha idéia é usar a internet para dinamizar a possibilidade de nos tornarmos independentes das limitações do papel, sem abrir mão do papel, que é insubstituível. Há muita coisa a fazer, sobretudo nas ciências humanas - afirma Viveiros de Castro.

No ano passado, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, deparou-se com a reação da Time Warner nos EUA quando quis liberar sob creative commons músicas que tinha lançado pela gravadora. Para evitar problemas, escolheu outras músicas, como "Oslodum", que não criavam atrito com a gravadora. Na opinião de Viveiros de Castro, Gil é "um herói atual do mundo" na campanha não apenas pelos creative commons, como pela preservação da liberdade em geral na internet.

De acordo com Ronaldo Lemos, hoje "estamos assistindo à apropriação dos referenciais culturais comuns".

- Quem faz um filme não pode dispensar a atuação de um advogado para evitar problemas como o ocorrido com "Os 12 macacos", em que o designer de uma cadeira filmada reivindicou seus direitos autorais e atrasou a estréia em circuito comercial - lembra Ronaldo Lemos. - Na História da Humanidade, a cultura sempre foi um bem comum, mas agora, do ponto de vista do Direito, está cada vez mais cerceada, também na internet. Com os creative commons queremos trazer de volta o universo comum. A cultura da propriedade está colonizando o âmbito da cultura.

Softwares livres são estimulados pelo governo

O espírito dos creative commons e do copyleft vai ao encontro dos esforços que o governo tem feito para passar a usar a maior quantidade possível de softwares livres e gratuitos na máquina estatal.

- O Brasil já deixou clara internacionalmente a sua posição. O endurecimento da legislação de propriedade intelectual está bloqueando o avanço da tecnologia no mundo. O país quer defender o uso compartilhado de tecnologia, para que os ganhos da sociedade de informação não estejam concentrados em poucos países do mundo. Isso porque na sociedade de informação conhecimento é conceito-chave, e ele deve ser repassado, compartilhado. Quanto mais você compartilha, mais ele cresce. Esta é a posição do Brasil e ela gera bons frutos econômicos - destaca o presidente do Instituto Nacional de Tecnologia e Informação (ITI), Sérgio Amadeu.

Além de resultados no contexto de grandes empresas, os resultados ocorrem no nível microeconômico, aposta Ronaldo Lemos. O medo que muitos autores têm de perder público, devido à licença de reprodução, não tem fundamento, pois, argumenta ele, quem for comprar o livro não vai deixar de fazê-lo. Ele cita como exemplo o jovem escritor Cory Doctorow, um blogger que teve a primeira edição de seu romance de estréia esgotada. Além disso, os creative commons permitem soluções inovadoras, como a da gravadora Magnatune, que libera o uso comercial de suas músicas, desde que se preserve o direito autoral.

- É um novo tipo de negociação com o direito autoral. Esse debate já está aberto e nós vamos ter de dar conta das novidades - afirma Ari Roitman, editor da Garamond, que já foi sondado para lançar livros sob a licença CC. - Dependendo do tipo de livro, posso lançá-lo sob essa licença. Mas num livro universitário eu acho injusto, pois aí já teríamos uma utilização comercial. Quem iria lucrar? As casas que fazem fotocópia.

O advogado do Sindicato Nacional dos Editores de Livro (Snel), Gustavo Martins de Almeida, também diz que se trata de uma nova filosofia de relação entre autor e editor, que precisa ser discutida.

- Os creative commons facilitam a divulgação e a circulação da obra e isso é bem-vindo, mas é preciso respeitar o lado do editor, que investe em tinta, papel, distribuidor, livraria. O ponto novo é esse: a flexibilização do direito do autor. Precisamos ver como isso vai se adaptar à realidade do país. Quem sabe o governo, com a política de aquisição de livro, permita isso? Ele poderia permitir um efeito multiplicativo na distribuição nos livros didáticos - observa o advogado.

Ferramenta para ampliar uso de novas mídias

Se nos suportes tradicionais as novas modalidades de direito autoral, além dos tradicionais copyright e domínio público, ainda precisam passar por esse processo de adaptação, no meio digital os creative commons podem ser uma importante ferramenta na política cultural brasileira, diz Ronaldo Lemos.

- Tem a ver com a estratégia de inserção cultural do país. Existem dois modelos de inserção. De maneira centralizada, como a China tem feito, produzindo, por exemplo, filmes à altura ou até melhores que os de Hollywood, ou de forma descentralizada, que parece ser o mais adequado para o Brasil. Isso pode se dar, por exemplo, através de toda uma nova mídia que se desenvolve, como os celulares e os i-Pod, e para a qual ainda não temos conteúdo. Nesse contexto, os creative commons podem ser fundamentais - destaca o advogado.