Título: A NOVA ERA DOS DIREITOS AUTORAIS: YÚDICE DEFENDE CRIAÇÃO DE SETOR PARA GERENCIAR A RELAÇÃO ENTRE AUTOR E COPYLEFT
Autor: Rachel Bertol
Fonte: O Globo, 05/03/2005, Prosa & Verso, p. 1

'A cultura fortalece o tecido social'

A aposta na produção cultural como recurso natural é cada vez mais forte, diz ensaísta americano

Em "A conveniência da cultura ", livro que está sendo lançado pela editora da UFMG, o americano George Yúdice analisa, a partir de suas pesquisas no continente americano, dos EUA ao Brasil, como a cultura tem sido tratada e assimilada nos últimos anos em fóruns internacionais, sendo objeto de negociações em tratados de livre-comércio e de políticas de integração e inclusão social. Yúdice defende a idéia de que a cultura, cada vez mais, deve ser percebida da mesma forma que se vêem os recursos naturais: assim como a água ou a floresta, a cultura, na sua opinião, deve ser gerenciada a fim de garantir o equilíbrio de interesses entre criadores, empresas e sociedade. Professor da Universidade de Nova York, Yúdice tem, entre muitas atividades, um programa de verão de um mês em Cuba, onde ensina música cubana a estudantes americanos. Já morou no Brasil e em outros países da América Latina. Ele deverá vir ao Rio este mês, para lançar seu livro.

Qual é o sentido da cultura como recurso?

GEORGE YÚDICE: A cultura, tal como se encontra hoje nos ministérios culturais, nas instituições intergovernamentais, como a Unesco e o Banco Mundial, é justamente isso: a cultura como recurso para fortalecer o tecido social. Em muitos lugares pobres, fornece oportunidades de emprego e a produção cultural é organizada para a sustentabilidade, não apenas cultural, mas da sociedade em geral. Os funcionários que se especializam em política cultural estão buscando uma nova maneira de expandir o setor, com políticas muito mais abrangentes que antes. Hoje não se pode pensar em cultura sem pensar em economia e em bem-estar social. E isso não está somente nas mãos do governo, também ocorre nas articulações entre instituições do governo e organizações da sociedade civil. No capítulo que falo do grupo Afro-Reggae, fica evidente que a maneira como eles praticam a cultura se articula com políticas governamentais, com empresas e com sociedade civil. De um lado, existe a cultura específica deles, sua produção. De outra, a atividade econômica, social e de relacionamento.

Quando ganhou força a idéia da cultura como recurso?

YÚDICE: O conceito de cultura como recurso natural pode se aplicar a qualquer momento da História, mas o que é novo é o entendimento disso. É algo que ganhou força nos últimos 20 anos. Isso se deve a um complexo de fatores. Em parte, as crises econômicas no mundo, a partir dos anos 70, e as maneiras de resolvê-las levaram os governos e as empresas a se organizar de maneira diferente, em que a informação e o conhecimento ganham importância. Ao mesmo tempo, surgiram novas tecnologias de informação e comunicação, nas quais o capital mais importante não é só o financeiro e econômico, mas também o capital do conhecimento: as idéias, a informação. É a desmaterialização dos recursos. O capital de investimento numa empresa não é dinheiro necessariamente ou infra-estrutura. São idéias. É conhecimento, informação.

A cultura deixa de ser algo periférico na produção...

YÚDICE: Tem-se pensado cada vez mais como a cultura tem contribuído para o PIB, por uma série de fatores, como a importância da informação e do conhecimento. Por outro lado, nos anos 90, empresas que não têm nada a ver com cultura começam a comprar empresas culturais. Por exemplo, a General Electric compra um selo de música, fenômeno que também acontece na Europa. As empresas culturais começam a entrar no mesmo contexto das maiores empresas do mundo. Além disso, certos aspectos da cultura são fundamentais para a economia. Por exemplo, os direitos de propriedade intelectual. Isso é outro fator onde a cultura exerce um papel importante: o copyright e as patentes são os dois direitos de propriedade intelectual mais importantes. A produção das indústrias culturais - filme, TV, música, edição de livro - se baseia totalmente no copyright, que pode ser vendido, licenciado etc. O grande recurso para o crescimento das empresas é ter direitos de propriedade intelectual: o que produz o lucro é a posse do direito. A maioria dos direitos de produção é gerada nos países de primeiro mundo, que lucram com isso, mesmo que a produção seja feita em países de terceiro mundo. Isso também tem um impacto para dar visibilidade a alguns aspectos culturais.

O que acha do copyleft?

YÚDICE: É importante. O copyleft também está vendo a cultura como recurso, só que um recurso monopolizado pelas empresas e, em muitos casos, pela relação estreita entre empresas e governos. O objetivo é permitir que o direito à cultura, o direito à reprodução não seja a província só das empresas. É uma maneira de assegurar a sustentabilidade da atividade cultural e não restringi-la ao campo da ação das empresas.

Acredita que é um risco?

YÚDICE: Um grande risco. Quando você vê o surgimento de um movimento como o do creative commons, no qual Gilberto Gil está engajado, trata-se de uma tentativa de encontrar uma maneira de devolver esses direitos ao espaço comum, do público. Os "commons", em inglês, são o espaço público. É o espaço, no município, onde os cidadãos se congregam para decidir. É uma idéia inglesa. Não chega a ser um conselho, porque todo mundo, todo cidadão pode participar. Todo município de origem inglesa nos EUA, especialmente no nordeste do país, tem um espaço que se chama "commons", que é um como um quadrilátero onde todo mundo pode ir. No século XVII, quando os municípios eram pequenos, todo mundo decidia, não havia conselho. A idéia é que a cultura pertence na realidade a esse espaço publico, à esfera do público. O copyleft é uma maneira de devolver esses direitos ao espaço comum, do público.

Mas isso não é um risco para o autor?

YÚDICE: Por isso, precisa-se de um setor que vai negociar, ou gerenciar, essa relação entre direito de autor e o copyleft. No mundo capitalista, o artista, o criador precisa de direito de autor. A empresa também tem uma função importante, mas as empresas estão tentando cada vez mais estender seu poder sobre o direito. Essa extensão do poder sobre o direito pode ser um perigo para a esfera do público. As empresas querem ficar com o direito de propriedade intelectual, que é um recurso rentável. Precisa-se de um sistema de gerenciamento, entre os direitos do criador, os direitos da empresa, os direitos do público. Esse tipo de gerenciamento, cada vez mais necessário, nunca tinha sido pensado assim, é algo recente. Mas é necessário, porque hoje se vê a cultura como recurso, como se fosse água ou ar. É justamente o que se faz com os recursos ambientais. É um conceito diferente do conceito da empresa, porque o que se está gerenciando são os interesses do público em relação aos interesses privados, e a cultura cada vez mais vai entrar nesse tipo de gerenciamento, ou management. É uma negociação entre criador, empresa e público.