Título: Refluxo para o real
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 06/03/2005, Panorama Político, p. 2

No domingo passado havia uma crise política em formação. Tucanos em pé de guerra, pregando o impeachment de Lula, que por sua vez cruzara a linha de fogo ao falar em corrupção no governo tucano. Em uma semana a crise exalou seus venenos e murchou. Era uma extemporânea flor eleitoral. Os dois lados, PSDB e PT, sentiram a vertigem e refluíram da exacerbação pré-sucessória.

Os dois lados tiveram sinais de desaprovação ao pugilato fora de hora que ninguém, do lada da rua, parece disposto a suportar por longos 20 meses.

É verdade que o governo procurou gerar fatos dissipadores e foi mais uma vez ajudado por aquele que, também há poucos dias, apareceu em cena como uma assombração. Foi Severino Cavalcanti, com as manobras malsucedidas para conceder o aumento dos deputados, que alterou substancialmente o curso da semana. E ao inviabilizar o aumento, o presidente do Senado, Renan Calheiros, além de encarnar o paladino da austeridade, aumentou os débitos do Planalto para com os aliados. Débitos que aumentarão quando Severino Cavalcanti, já esfriadas as brasas do caso, mandar para o arquivo o pedido de processo contra Lula encabeçado pelos tucanos.

Mas vamos aos refluxos. No PSDB, houve silêncios e reticências importantes sobre a reação violenta do partido. José Serra e Aécio Neves, por exemplo, não levantaram a voz. Os governadores Lúcio Alcântara e Marcone Perilo até estiveram com Lula ao longo da semana, tratando de assuntos administrativos. A reação foi basicamente do núcleo liderado por Fernando Henrique, que ficou numa nota dura e sóbria. Para o alarido, tem seus jagunços. Houve avaliações dentro do partido sobre a inconveniência de partirem agora para uma oposição à moda do velho PT, que aposta na crise e no pior em busca do melhor no plano eleitoral. Ao encontro desses receios veio a entrevista do ministro Dirceu a Helena Celestino e Merval Pereira no GLOBO, pespegando nos tucanos o rótulo de revanchistas e desestabilizadores.

Houve também rosnados internos entre os tucanos. O governador de Minas, Aécio Neves, fez chegar aos paulistas que a escolha do candidato a presidente em 2006 não será resolvida apenas entre eles. O governador Geraldo Alckmin já vinha de fato ganhando desenvoltura como candidato quase escolhido, marcando até viagens Brasil adentro. No meio da semana tiveram longa conversa telefônica, concluindo que o processo de escolha terá que ser conduzido com novos cuidados, agora que Lula e o PT perderam a aura de invencíveis com a derrota sofrida na Câmara.

Da parte de Lula, tem-se notícia de que, passado o espanto inicial com as reações a seu discurso no Espírito Santo, já admite que andou obsidiado pelas críticas de Fernando Henrique. Estaria agora disposto a vigiar-se contra a tentação de rebater um adversário que hoje não é uma ameaça. Na última pesquisa CNT-Sensus, FH alcança apenas 22,9% numa simulação de segundo turno contra Lula, que chega aos 56,8%. O PT, atordoado pela derrota, também voltou-se para seus problemas internos. Falta-lhe energia até para defender seu território na reforma ministerial.

Mas não fica só na redução do ruído o sinal de que os dois lados, depois da escaramuça, aterrissaram em terrenos mais arados pela sensatez. Já está sendo retomada uma agenda de interesses comuns entre os governadores e o governo federal. O ministro Palocci esteve com o governador tucano Lucio Alcântara, juntamente com Jorge Viana, do PT, discutindo a ressurreição da reforma tributária. Ela não vem sem um acordo entre governo e oposição. Na terça-feira, é Aécio que estará com Palocci, apresentando uma nova fórmula para compensar os estados, quando perderem o instrumento da guerra fiscal com a unificação das regras do ICMS. No Senado, tucanos e petistas chegaram a um acordo para aprovar um projeto do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) em lugar de um do governo, autorizando a formação de consórcios públicos. Trata-se de associações entre prefeituras, ou entre estas e os governos estaduais ou federal, para a prestação conjunta de serviços públicos. Na área de saneamento, por exemplo, esta é a saída para os municípios das grandes periferias, que poderão privatizar blocos intermunicipais de serviços ou mesmo explorá-los através de uma empresa comum.

A vida real é feita dessas coisas, e a tantos meses da eleição, ela é que interessa ao eleitorado. Sopapos fora do tempo eleitoral são vistos como politicagem. Eles parecem ter entendido isso, ainda que por uns dias.

OS MAUS MODOS marcam o governo. Fábio Kerche ficou sabendo quase ao mesmo tempo que os jornalistas que cobrem o Planalto das mudanças na estrutura de comunicação anunciadas pelo ministro Gushiken. Não foi consultado, apenas informado em dois minutos pelo ministro, já na hora do anúncio. É mais um que deixa o governo magoado. Gushiken vai levar parte de sua equipe para a Secretaria, que agora será chefiada por André Singer. O perigo é se todos ali forem glaciais como o porta-voz e fóbicos a jornalistas como o ministro.

DIRCEU E MERCADANTE foram escalados por Lula para ouvir os partidos no fim de semana sobre a reforma ministerial. É com eles que Lula mais tem conversado sobre o assunto. Se depender deles, muda tudo na área política. O líder do governo na Câmara e o ministro da Coordenação. Afinal, dizem a Lula, é na área política que está agora o problema maior do governo. Lula ouve, ouve, mas continua dando a entender que manterá Aldo Rebelo no cargo.

DOIS MIL PREFEITOS vão ocupar Brasília amanhã e terça-feira, pedindo mais verbas federais. O comércio de Brasília, sobretudo o noturno, adora esses visitantes de pires na mão.