Título: A noite e a manhã
Autor:
Fonte: O Globo, 13/03/2005, Panorama Político, p. 2

A ditadura militar começou a morrer bem antes, quando os brasileiros começaram a perder o medo, foram às ruas e anteciparam a volta programada dos militares aos quartéis. Mas o marco foi aquele 15 de março de 1985, em que tomou posse o primeiro presidente civil depois de 1964, dando início aos últimos 20 anos de democracia ininterrupta.

Naquela manhã nublada, a multidão dispersa descia a Esplanada de Brasília para acompanhar a posse. Alguns nem sabiam que José Sarney, e não Tancredo Neves, operado na véspera, é quem tomaria posse. Temendo a frustração popular, Sarney quase desistira de ir no carro aberto da Catedral até o Congresso. Como os demais, não dormira. Maior fora o temor de uma quartelada, um retrocesso, como se dizia, que jogasse por terra toda a luta.

Dois meses antes, em 15 de janeiro, Tancredo fora eleito presidente, com Sarney de vice, matando a ditadura com seu próprio veneno, o Colégio Eleitoral destinado a confirmar presidentes militares. Embora indireta, a eleição fora legitimada nas ruas pelo apoio de multidões. As mesmas multidões que, um ano antes, encheram as praças cobrando o direito de eleger pelo voto direto o presidente. As últimas forças, o regime gastara no abril anterior, derrotando a emenda das diretas. Perdera os dentes e os aliados civis, que entenderam a hora, romperam com o PDS e formaram com o PMDB a Aliança Democrática para eleger Tancredo.

Mas já vinha morrendo aos poucos a ditadura que matara, exilara, prendera, torturara e suprimira direitos e liberdades. Por exemplo, quando cinco mil pessoas foram à missa da Catedral da Sé, em 1975, protestar em silêncio contra o assassinato de Wladimir Herzog na prisão; quando as mulheres, sobretudo as mães de exilados, começaram a montar comitês pela anistia, entre 1977 e 1979; quando a classe operária, sob a liderança de um certo Lula, o metalúrgico do ABC, voltou a exercer seu direito de greve; quando os estudantes, calados desde a derrocada de 1968-69, reorganizaram suas entidades e voltaram a se manifestar.

No início de 1985, Brasília era uma festa permanente. Depois da eleição, em 15 de janeiro, o carrossel não parou, mesmo durante a viagem de Tancredo à Europa. Nós, repórteres políticos, tropeçávamos em reuniões e articulações por toda a cidade. No Congresso, no escritório político da FGV, na Granja do Rio Fundo, onde Tancredo foi morar, nos apartamentos, nos restaurantes. Tancredo dava entrevistas coletivas, uma novidade, onde tudo era perguntado. E festas, muitas festas, celebrando com outros pretextos o fim da ditadura e a esperança na Nova República. Na campanha das diretas a música de fundo fora ¿Menestrel das Alagoas¿, gravada por Fafá de Belém. Agora, em tom desaforado, cantava-se muito o ¿Apesar de você¿, de Chico Buarque. O outro dia chegara, ainda que não da forma que muitos sonharam. Tancredo, em todos os pronunciamentos, afirmava a natureza conciliadora da transição e de seu governo, que incorporava os dissidentes do velho regime. Na formação do Ministério, ele deu uma aula de política, observando o critério federativo e o equilíbrio entre as forças que o apoiaram.

Na noite do dia 14, a notícia de sua internação repentina no Hospital de Base alcançou os novos mandarins em festas e jantares. Da embaixada de Portugal, de um jantar com o primeiro-ministro Mario Soares, saíram esbaforidos, entre outros, o futuro ministro da Justiça, Fernando Lyra, e o líder do novo governo no Congresso, senador Fernando Henrique. De outro jantar na Academia de Tênis saiu correndo, entre outros, um personagem importante daquela noite, o general Leônidas Pires Gonçalves. A redação do GLOBO fervia: repórteres e fotógrafos partindo em todas as direções. Fui à casa de Sarney, que já estava no carro, lívido, rumo ao hospital. Lá, juntou-se a Ulysses Guimarães, Aureliano Chaves, Pimenta da Veiga, Marco Maciel e outros condestáveis. Logo chegou o general Leônidas, que assim recorda no livro de Ronaldo Costa Couto, ¿Memória viva do regime militar¿ (Record):

¿ Não sei se estavam (Ulysses e Sarney) fintando ou assustados. Mas cada um dizia que era o outro que devia tomar posse.

Esta parte já foi muito contada, até em versões variadas. Com ele foram para a casa de Leitão de Abreu, chefe do Gabinete Civil do presidente Figueiredo, os presidentes da Câmara (Ulysses) e do Senado (José Fragelli) e Fernando Henrique. Não para discutir mas para comunicar a posse de Sarney, dissera o general, citando o artigo 77 da Constituição em vigor.

Foi temendo um veto à posse de Sarney que Tancredo escondera a doença e resistira à cirurgia. ¿Depois da posse, façam de mim o que quiserem¿. Diante do risco de vida apontado pelos médicos, fora convencido pelo sobrinho e ministro da Fazenda escolhido, Francisco Dornelles: Leitão garantia a posse de Sarney. Mas isso ainda não tinha acontecido.

O hoje governador de Minas, Aécio Neves, neto e secretário-particular, olhos vermelhos, providenciara uma avião para levar o avô para São Paulo. Não há tempo, diziam os médicos.

Era preciso tomar outras providências. Lyra e Dornelles foram refazer os atos de posse dos ministros, já assinados por Tancredo. Lyra ainda tem o seu na parede. Fizeram outros, para Sarney assinar.

Longa foi a noite mas disso pouco sabiam os que desceram a Esplanada na manhã seguinte, pisando a grama ainda molhada. Importante é que haveria posse, e houve.