Título: O JOGO RASTEIRO DO PODER QUE COOPTA MINISTRO
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Fonte: O Globo, 13/03/2005, Opinião, p. 7

Se a vida é construída de fatos cotidianos, existem momentos em que ela é sacolejada por acontecimentos inesperados, mudando rumos e produzindo novas esperanças ou desencantos. Na Natureza não é diferente: ela se apresenta com ciclos conhecidos, porém é catastrófica quando resolve recolher suas energias mais profundas e apresentá-las de forma insofismável, sem deixar margem para apelação por parte da Humanidade.

Guardadas as proporções, a política também costuma caminhar sob o manto de cenários previsíveis. Entretanto, pode sair do seu leito natural, transbordar, gerar crises profundas, enterrar paradigmas, mostrar o que está morrendo, o que está podre, exigir transformações e novos comportamentos de seus atores.

A derrota fragorosa do governo na disputa pela presidência da Câmara dos Deputados parece constituir um desses episódios basilares.

A crise da Câmara desnudou de vez uma velha e viciada política que o governo, por interesses apenas conjunturais e relacionados ao jogo do poder puro e simples, teimava em manter, apesar de ter sido eleito fazendo o discurso da mudança.

Antes que sigamos para outros raciocínios, uma definição parece-me clara: a gestão de Severino Cavalcanti não será hilária nem folclórica (embora corra algum risco de assim ser vista e tratada), terá um corte nitidamente conservador e fundamentalista e, ainda como rescaldo, forte presença do corporativismo e do fisiologismo. Mas, sem dúvida alguma, vai estar condicionada a reafirmar princípios constitucionais até mesmo porque não representa qualquer grande movimento de opinião pública que possa colocar a nossa institucionalidade em perigo.

Como já é consenso, a vitória de Cavalcanti tem um responsável direto: o governo federal. Há dois anos, desde quando Lula assumiu, o Palácio do Planalto e seus agentes mais visíveis (e invisíveis) vêm intervindo diuturnamente, e de maneira grosseira, na vida do Parlamento em nome da governabilidade, buscando construir uma maioria seja cooptando, dividindo e desmoralizando os partidos políticos, na convicção de que todos os meios são válidos se o fim é nobre.

Para fins desta avaliação, pouco importam os homens do governo ¿ muitos deles políticos sérios e bem-intencionados. Fazemos referências a processos tortos que, perigosamente, corrompem gerações de quadros e políticos no Executivo e no Legislativo com idéias e práticas igualmente tortas, como o tráfico raso de influência e ¿ mais triste ¿ com o uso do sonante dinheiro. Quando o pragmatismo substitui o princípio, então o altruísmo que deve conduzir a política desaparece.

O PT sempre acreditou e buscou implementar o primado do partido único, portador de esperanças e instrumento pedagógico da construção de uma nova sociedade. Antes atuava procurando alianças com segmentos progressistas de outros partidos, na esperança de dividi-los. Hoje, de forma mais abusada, e contando com o suporte do governo, foi para além dos segmentos, passou a fazer negócios e acordos diretamente com pessoas isoladas, parlamentares, políticos. Virou as costas para o institucional e criou no Congresso Nacional uma espécie de escambo, de mercado de trocas.

O nosso partido, o PPS, só não sucumbiu porque resistiu ao modelo, tem vocação republicana inequívoca e conta com homens e mulheres que ainda acreditam na política como arte de transformação do Brasil e do mundo. Nosso PPS não aceitou o jogo rasteiro do poder que cooptou ministro, procurou inchar a bancada como se acampamento de adesistas fosse, buscou imobilizar mandatos e lideranças, tentando usá-los como aríetes para arrombar portas.

Reagimos, sobrevivemos e continuamos vivos para construir uma nova alternativa para o país.

A derrota do governo, ocorrida em um quadro de equívocos doutrinários e pragmáticos, agenda e exige a reforma política, direcionada para fortalecer partidos e não mandatos isolados. A atomização da política em torno de pessoas significa a sua desmoralização, é abrir espaços para que no futuro as nossas instituições democráticas entrem em colapso. Mais, a política atomizada nos moldes atuais abre-se ao jogo mafioso da corrupção, contaminando todas as esferas do poder.

Queremos que o governo Lula dê certo, não apostamos no quanto pior melhor. Entretanto, para que isso ocorra, ele tem por obrigação resgatar esperanças e converter-se, de corpo e alma, e de forma radical, à prática do respeito democrático às instituições republicanas. Sem essa premissa, o diálogo do governo e do PT com o Congresso e a própria sociedade reservará novas e desagradáveis surpresas.