Título: VIDA SEVERINA
Autor: Flávia Oliveira
Fonte: O Globo, 13/03/2005, Economia, p. 31

Esperança no semi-árido

Unicef inicia mobilização para espalhar por 1.444 cidades ações que salvam crianças

Àprimeira vista, mudou pouco o cenário agreste. Há famílias miseráveis, animais debilitados, açudes rasos, o verde desbotado nas árvores com nova seca à espreita. De perto, o semi-árido parece menos doente. Os pequeninos já não morrem às pencas antes do primeiro aniversário, a desnutrição não se expõe em estética africana, as creches se multiplicam, a maioria dos meninos e meninas freqüenta o ensino fundamental. São passos modestos, comparados à dívida social brasileira. Mas têm como base políticas públicas persistentes, que o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) planeja ver reproduzidas nos 1.444 municípios dos nove estados do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (o governo reconhece 1.132), para melhorar as condições de vida do segmento etário que mais sofre com a pobreza ¿ lá vivem 10,9 milhões de crianças e adolescentes de zero a 17 anos. Para isso, vai lançar uma campanha no próximo 7 de abril.

O pedaço do Brasil desde sempre massacrado pela seca exibe os piores indicadores sociais do país. Na área de 1,4 milhão de quilômetros quadrados que sai do Nordeste e encosta no Sudeste, a taxa de mortalidade infantil supera a média nacional (27 por mil nascidos vivos) em 95% das cidades; a população com até dois anos desnutrida é de 8,3%, quatro vezes a registrada no Sul; um em cada seis menores de 10 a 15 anos trabalha; 75% das crianças vivem em famílias com renda per capita inferior a meio salário-mínimo.

Com dois mínimos, o sustento de 14

São meninas como Maria Eleozina que, aos 2 anos, ainda não anda por desnutrição. A pequena foi entregue à bisavó, Antonia Borges de Abreu, pela mãe, Maria das Graças Ribeiro de Oliveira, de 20 anos. Ela vive em Tejuçuoca, cidade de 14 mil habitantes a 145 quilômetros de Fortaleza, com o marido e os outros dois filhos, ambos Francisco, num cômodo nos fundos da casa de dona Antonia que, com os dois salários-mínimos da aposentadoria dela e do marido, sustenta outras 12 pessoas.

¿ Tenho pena, porque eles não têm nada ¿ justifica a ex-lavradora, de 72 anos, mãe de 20 filhos, sete vivos.

Cabelos longos e presos, a matriarca de rosto marcado é de um tempo em que ¿os meninos¿, como dizem os nordestinos, não resistiam à fome nem às diarréias causadas pela má qualidade da água. Seus três filhos e quatro filhas também já enterraram bebês. O destino tem sido generoso com a quarta geração: seus bisnetos sobrevivem.

Francisco Domingos, de 3 anos e meio, foi uma das 36 crianças que já passaram pelo Centro de Recuperação Nutricional, aberto em 1998 pela prefeitura. É também no centrinho que sua irmã Eleozina recebe reforço alimentar e freqüenta sessões de fisioterapia e estimulação para aprender a andar e a falar. Em sete anos de programa, a desnutrição em crianças no primeiro ano de vida caiu de 10% para 2%; e de 1 a 2 anos, de 21% para 10%.

¿ Os problemas são imensos, porque a desnutrição não é só por falta de alimentos, mas de afeto, de estímulo, de higiene. Só não podemos desanimar diante da realidade difícil, porque essas crianças conseguiram a vitória de ficarem vivas ¿ ensina Rogério Bessa, médico do Programa Saúde da Família.

Toda segunda-feira, Bessa ¿ e quase toda a equipe técnica, incluindo secretários, do prefeito Edilardo Eufrasio da Cruz (PSDB) ¿ deixa a mulher e as duas filhas em Fortaleza para passar a semana no interior.

O município criou o centrinho para atender às crianças da área urbana, que abriga 30% dos habitantes. Na área rural, funciona o Geração Futuro Hoje, de combate à desnutrição, atividades lúdicas, orientações sobre saúde e qualificação profissional para as mães (que aprendem a bordar). O programa atende a 140 crianças de até 6 anos. Meninos como Vander, de 5 anos, filho de Lucivanda Guerra, não pesa mais de 15 quilos, quase o mesmo que o irmão, três anos mais novo. Ou Jessica, de 2 anos, caçula de Silvana Silva, que um ano atrás pesava oito quilos e, desde que entrou no programa, engordou três.