Título: Tancredo e a democracia
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Panorama Político, p. 2

Em todas as evocações dos trágicos dias 14 e 15 de março de 1985 transparece o sentido de imolação de Tancredo Neves para assegurar, ainda que ao custo de sua vida, os ritos que poriam fim à ditadura. A quase premonição de que seu papel culminava e terminava na transição ressurge nas lembranças do governador Aécio Neves, seu neto e secretário-particular, algumas das quais revela aqui pela primeira vez.

Falando de suas grandes responsabilidades como primeiro presidente civil pós-64 e artífice da reconciliação nacional, ele se valia de um verso de Paul Verlaine. Dizia entregar-se a serviço da nação com ¿o horror e o êxtase de haver sido o escolhido¿. Eleito, não chegou a governar mas coube-lhe, diz Aécio, conduzir a mais bem sucedida das transições redemocratizantes e uma das mais complexas articulações da história política brasileira no século passado.

¿ Nossa transição foi singular porque Tancredo, buscando unir todas as forças políticas, não perdeu de vista a busca do apoio popular legitimador. Dizia ele que em política não basta tomar as decisões corretas. É preciso tomá-las na hora certa ¿ diz Aécio, recordando uma das decisões mais cruciais.

¿ Isso explica que ele só tenha resolvido deixar o governo de Minas para ser candidato a presidente quando a dissidência do PDS já era um fato, garantindo competitividade a seu nome no Colégio Eleitoral. Não era uma aventura. Mas assegurada, a vitória não estava, e Tancredo correu o risco, próprio da atividade política. Em muitas outras ocasiões deu provas de coragem e de saber distinguir entre risco político e aventura.

Mas, mesmo eleito, ele continuou a temer o retrocesso, e isso explica tanto atitudes políticas como a resistência em se operar, pois temia mesmo que pudessem vetar a posse de seu vice José Sarney.

¿ O apoio popular era importante para legitimar a candidatura mas também para inibir os setores militares reacionários. A viagem aos EUA e à Europa em pleno inverno buscou também apoio internacional à transição brasileira. Tancredo nunca descartou o risco do retrocesso, trabalhando o tempo todo com informações de diferentes setores das Forças Armadas. Ele sabia que os radicais de direita eram minoritários mas temia que fossem favorecidos por uma situação política inesperada. Isso o leva a administrar a doença com estrito sentido político.

As dores, revela, ao contrário do que sempre se disse, não apareceram na véspera da posse. Já vinham desde o fim de fevereiro.

¿ Uma madrugada, saímos escondidos do escritório da FGV para fazer um exame numa clínica particular de Brasília. Ele, eu, Tancredo Augusto e o doutor Renault, seu médico de confiança. Ali detectou-se o divertículo. Ali ele tomou a decisão de não se operar antes da posse. ¿Depois, façam de mim o que quiserem¿. Mas ninguém nos falou em emergência. Doutor Renault monitorava o caso, colhendo sangue diariamente para o hemograma.

Mesmo assim, Aécio montou um esquema de avião para o caso de ele ter de ser removido às pressas para São Paulo. Na noite do dia 14, durante a missa, viu que o avô levava com freqüência a mão à barriga. Conhecia isso, sinal de que a dor voltava. Em casa, durante o jantar, Tancredo soltou os talheres sobre a mesa e foi para o quarto. Aécio foi encontrá-lo sobre a cama, transpirando e trêmulo de dor. Começou a procurar os médicos por telefone, e gastaria nisso uma hora. No intervalo, chegou José Hugo Castello Branco, já escolhido como chefe do Gabinete Civil. Iria dispensá-lo, avisou o avô.

¿ Dispense o Zé Hugo mas antes peça-lhe os atos de nomeação dos ministros para eu assinar. Não sei o que vai me acontecer. Estes atos poderão ser muito importantes no processo.

Assinou-os na cama, esperando os médicos, que chegaram e avisaram logo: quadro abdominal agudo e cirúrgico. Aécio falou do avião, retrucaram que não se responsabilizariam por uma remoção. A Tancredo, disseram que iria ao Hospital de Base só para fazer uns exames.

¿ Ali, houve o que o país já sabe, inclusive a invasão do centro cirúrgico por mais de 20 pessoas. Lembro-me de Tancredo com o rosto coberto por um lençol, com dor mas perfeitamente lúcido, sendo carregado de maca de um lado para o outro. Depois da cirurgia, ainda comemorou-se seu êxito, e falou-se até na hipótese de uma posse no hospital. Mas no dia seguinte, ele tentou se levantar, gemeu de dor e disse:

¿ Arrebentou tudo!

Voltou para a cama, e logo veio a segunda cirurgia, a remoção para São Paulo e o longo calvário.

Nestes 20 anos, a democracia brasileira passou por provas que deixariam Tancredo orgulhoso, diz Aécio. Ele dizia que há governos democráticos bons e ruins, mas que o pior deles é melhor que um despotismo esclarecido.

¿ Mas a frase de Tancredo que me tem ecoado nos dias de hoje é: ¿Sem federação não há República¿. A grande homenagem que podemos fazer a ele e a todos que nos legaram a democracia é reconstruir o pacto federativo, a fim de libertar as forças criadoras do passado e assegurar seu desenvolvimento soberano ¿ diz o governador.

AINDA EVOCANDO Tancredo Neves, o deputado Francisco Dornelles diz dele ter ouvido, ao ser convidado para ser ministro da Fazenda. ¿A inflação e a indexação são duas pragas, sobretudo para os assalariados¿. Na democracia, diz Dornelles, o Plano Real concretizou uma de suas aspirações. O impeachment de Collor foi uma prova dura mas acabou com todos os temores de retrocesso.