Título: AIDS: SAÚDE AMEAÇA QUEBRAR PATENTE DE REMÉDIOS
Autor: Demétrio Weber
Fonte: O Globo, 15/03/2005, O País, p. 5

Ministério dá ultimato a três laboratórios americanos para que aceitem licenciamento voluntário de quatro medicamentos

BRASÍLIA. O Ministério da Saúde deu ontem um ultimato a três laboratórios dos Estados Unidos e ameaçou quebrar as patentes de quatro remédios contra a Aids, caso não cedam voluntariamente ao Brasil, mediante pagamento de royalties, os direitos de produção desses medicamentos. Em carta enviada aos laboratórios Abbott, Merck Sharp & Dohme e Gilead Science Incorporation, o ministro Humberto Costa fixou prazo de 21 dias para que as empresas se manifestem e aceitem o chamado licenciamento voluntário. Do contrário, o governo brasileiro deixará de lado as ameaças e decretará o chamado licenciamento compulsório, o que na prática é a quebra de patentes.

¿ Há uma grande possibilidade de decretarmos a licença compulsória, com a quebra de patente. É algo concreto, real, embora ainda estejamos apostando no licenciamento voluntário ¿ disse Humberto Costa ao GLOBO.

No caso da licença voluntária, o laboratório negociaria com o ministério um cronograma, transferiria a tecnologia e acertaria os custos da patente. Mas se for um licenciamento compulsório, o governo começa a produzir mesmo sem acordo com o fabricante internacional e sequer paga um percentual a título de royalties.

Às vésperas da reforma ministerial e já dado como carta fora do baralho nos meios políticos de Brasília, Costa partiu para a ofensiva nos últimos dias. Depois de decretar a intervenção federal no sistema municipal de saúde do Rio de Janeiro, na semana passada, ele agora investe contra os laboratórios estrangeiros.

Costa nega estratégia política para ficar no cargo

Costa, no entanto, negou que esteja seguindo qualquer estratégia política e afirmou que age em defesa do programa brasileiro contra a Aids:

¿ Não tem nada a ver com a reforma ministerial. É o timing que acertei com o presidente Lula. Tudo é fruto de discussão e o presidente Lula apóia nossa decisão ¿ disse ele, que evitou confirmar que as patentes serão quebradas para não prejudicar uma eventual negociação.

O ministro argumenta que o aumento do número de pacientes com Aids sob tratamento gratuito no Sistema Único de Saúde (SUS), somado ao reajuste de preços dos medicamentos importados, requer a redução de custos. Sem isso, ficaria sob risco o programa brasileiro de Aids, que serve de referência internacional dada a sua abrangência.

Compra de remédios custará cerca de R$900 milhões

A previsão este ano, segundo Costa, é que o número de pacientes aumente 20%, de 150 mil para 180 mil doentes. Enquanto isso, os gastos com a compra de remédios crescerão muito mais, ao redor de 90%, saltando de R$550 milhões para cerca de R$900 milhões. O ministro lembra que esse valor, já considerado demasiadamente alto, é resultado de uma negociação anterior em que foi obtido desconto de R$63 milhões.

Da despesa total do governo com remédios contra a Aids, 80% são gastos com anti-retrovirais importados. A maior parcela (67% da fatia dos importados) vai para os remédios dos três laboratórios, que custarão este ano R$473 milhões ao governo, segundo a assessoria de imprensa do ministério.

Costa disse que, com a quebra de patentes, laboratórios no Brasil poderiam produzir os medicamentos por ¿muito menos¿ da metade do que é gasto hoje. O ministério quer obter o licenciamento dos anti-retrovirais com os seguintes princípios ativos: lopinavir e ritonavir (Abbott), efavirenz (Merck) e tenofovir (Gilead Science Incorporation).

De acordo com Costa, apenas o laboratório Merck já deu sinais que estaria disposto a ceder a licença, mediante o pagamento de royalties. No Ministério da Saúde, apesar das declarações de Costa de que acredita no licenciamento voluntário, nem todos os laboratórios aceitarão abrir mão das patentes. Os remédios patenteados são justamente aqueles criados a partir de investimentos das empresas em pesquisa. O que a patente faz, durante um determinado período, é justamente assegurar a exclusividade na venda dos produtos resultantes daquela fórmula, de modo a ressarcir o investimento em pesquisa e permitir que a empresa lucre com isso.

Embora o governo brasileiro já tenha ameaçado quebrar patentes de remédios do coquetel anti-Aids no governo passado, isso acabou não ocorrendo. Segundo o ministro, a situação agora é diferente.

O principal motivo, segundo ele, é que os laboratórios nacionais estariam aptos a produzir os remédios em questão de meses, o que antes não ocorria.

¿ Agora é diferente. O governo Lula tem compromisso com a saúde pública e coloca isso acima dos interesses econômicos da indústria. Além disso, os laboratórios já terão capacidade de produção em pouco tempo e a legislação internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS) dá legalidade a esse procedimento ¿ disse.

No Ministério da Saúde, há expectativa em torno do desfecho do ultimato dado pelo governo. É que em maio será realizada em Genebra, na Suíça, a Assembléia Geral da OMS. Uma eventual decisão do governo brasileiro de quebrar patentes, acreditam técnicos do ministério, poderia servir de exemplo para outros países do mundo.

Costa disse que o prazo de 21 dias foi fixado considerando que esse é o tempo necessário para que os laboratórios americanos consultem suas matrizes nos Estados Unidos.