Título: E O EXÉRCITO GARANTIU A POSSE DE SARNEY
Autor: Jorge Bastos Moreno
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 2

General explicou Constituição a políticos

O empurra-empurra constitucional, ocorrido dentro do próprio Hospital de Base de Brasília, para descobrir quem deveria assumir a Presidência da República no lugar de Tancredo Neves, se Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, ou o vice José Sarney, tem versões tão diferentes até hoje quanto as que ainda povoam a fantasia popular sobre os motivos que levaram o presidente eleito a ficar doente às vésperas da posse.

Há pelo menos uma verdade em tudo isso: nenhum dos dois queria aceitar aquilo que todos imaginavam fosse naquele momento um fardo difícil e perigoso para quem assumisse a Presidência. Não queriam porque sabiam das resistências a seus nomes, dentro e fora das Forças Armadas. Como se chegou à conclusão de que era Sarney quem deveria assumir? A resposta a esta pergunta foi dada em tom de blague, anos depois, pelo próprio Ulysses Guimarães:

¿ Eu queria assumir, sim. Mas o meu ¿Pontes de Miranda¿ ficava cutucando com a espada nas minhas costas: ¿É o Sarney, é o Sarney¿.

O ¿Pontes de Miranda¿ (jurista brasileiro, profundo conhecedor das constituições) de Ulysses Guimarães era o então ministro do Exército escolhido por Tancredo, general Leônidas Pires Gonçalves, um militar a quem Tancredo, ainda como governador de Minas Gerais, recomendava aos repórteres: ¿Prestem atenção neste general, ele ainda vai longe¿. Só que o general não foi longe, foi longe demais.

Vinte anos depois daquela noite, Leônidas Pires Gonçalves revela agora ao GLOBO que Ulysses Guimarães não estava brincando.

¿ Eu cometi um gesto que poderia ter parecido inicialmente um ato ousado para um general na época: explicar a Constituição aos políticos.

De fato, na Escola Superior de Guerra, ao defender uma tese acadêmica sob o título ¿Um modelo político para o Brasil¿, Leônidas demonstrou amplo conhecimento sobre todas as Constituições brasileiras até a emenda de 69, até então vigente na época:

¿ Por isso, a brincadeira do doutor Ulysses de me chamar de ¿meu Pontes de Miranda¿. Na verdade, o que se verificou ali foi uma absoluta falta de ambição dos dois, dele e do presidente José Sarney.

Antes da revelação surpreendente que agora Leônidas Pires Gonçalves faz ao GLOBO, convém fazer, com todo o respeito, dois reparos às suas declarações acima e situá-lo dentro de toda a estratégia militar que levou o país a amargar 20 anos de ditadura. A ¿falta de ambição¿ a que se refere o general devia-se ao fato, no caso de Ulysses, de ser ele o político mais odiado pelos militares, e, no de Sarney, um dissidente político que ocupava um cargo partidário estratégico para consolidar a candidatura civil da ditadura agonizante e que se bandeou para o lado da oposição.

E alguns outros complicadores se fizeram sentir naquele momento: Ulysses tinha o apoio civil e também o do general-presidente retirante, mas não conseguiria manter-se no cargo sem o apoio dos militares.

O papel de Leônidas nisso tudo era o mais importante. Pertenceu ao grupo dos coronéis da revolução, teve uma relação forte com todos os generais do movimento. Em resumo, naquela madrugada do dia 15 de março era a maior autoridade das Forças Armadas e, como o país ainda vivia uma transição, era quem realmente mandava naquele momento:

Eis, finalmente, sua revelação:

¿ Eu tinha naquele instante duas qualificações fundamentais: conhecimento e poder. Eu tinha total conhecimento da Constituição, inclusive dos artigos 76 e 77. E tinha também o poder. O Exército não queria que os caminhos da normalidade se modificassem. A decisão do Exército brasileiro foi a de prosseguir a transição que estava sendo feita por Tancredo.

E foi aí que o general, despedindo-se de Sarney, disse-lhe a frase famosa e que hoje é título das memórias do ex-presidente: ¿Boa noite, presidente¿.

Resumo da ópera: o Exército garantiu a posse de Sarney. Ulysses, aos trancos e barrancos, garantiu-lhe a governabilidade.

Ulysses Guimarães, sem a mesma reverência, transformou José Sarney no seu contraponto, função que era antes de Tancredo Neves. Ulysses e Tancredo eram geniais esgrimistas. Manuseavam como ninguém espada, sabre e florete. Já com Sarney, Ulysses só cutucava. O então condestável da Nova República criou um verdadeiro governo paralelo depois que Sarney fez vazar a informação de que o aliado não respeitava nem a maçaneta da porta presidencial.

¿ Perguntem ao cidadão José Sarney ¿- foram as suas palavras mágicas para vetar Tasso Jereissati para o Ministério da Fazenda de Sarney.

A um elogio de Fernando Henrique Cardoso de que seu silêncio era mais pesado do que pata de elefante, Ulysses retribuiu com uma revelação:

¿ Certa vez, vetei um ministro de Sarney só com o silêncio do meu olhar.

Na Constituinte, viviam às turras.

--- A Constituição que estão fazendo vai tornar o Brasil um país ingovernável ¿ gritava Sarney do Palácio do Planalto.

Do outro lado da rua, no plenário da Constituinte, sob aplausos, Ulysses respondia:

¿ A governabilidade está no social. Ingovernável é a miséria, a fome, a doença inassistida.

E na promulgação da Constituição gritou seu ódio e nojo às ditaduras; fez um ministro militar sair da solenidade quando exclamou ¿a sociedade foi Rubem Paiva, não os facínoras que o mataram¿. Deixou um recado final: ¿Mais miserável do que os miseráveis são os governos que não acabam com a miséria¿. Dona Mora, sua mulher, censurou ¿são os governos¿ e colocou ¿é a sociedade¿. Senha para uma pacificação com Sarney, que de fato ocorreu quando juntos lutaram pela destituição de Fernando Collor de Mello. Ulysses morreu amigo de Sarney, como numa novela cujo Senhor do Destino foi de fato o general que foi longe demais: Leônidas Pires Gonçalves.