Título: Passos lentos rumo a um sistema acessível a todos
Autor: Galhardo, Ricardo e De la Peña, Bernardo
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 5

A conclusão é quase unânime entre magistrados e autoridades: com o regime democrático, a Justiça brasileira avançou. Um novo Ministério Público foi desenhado pela Constituição de 1988, foram criados os juizados especiais, de pequenas causas, a Lei de Improbidade Administrativa e o Código de Defesa do Consumidor. Mesmo passados 20 anos, porém, todos concordam que ainda é necessário reduzir o número de processos, agilizar a Justiça e garantir o acesso a ela a todos os brasileiros.

Entre 1990 e 2003, o número de processos na Justiça comum aumentou em 330%. Enquanto isso, a população brasileira cresceu cerca de 20%. Este aumento vertiginoso da procura pelo Judiciário é, segundo especialistas, conseqüência da redemocratização brasileira.

¿ Hoje temos um dos maiores índices per capita de ações judiciais do mundo ¿ lembra o ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr.

¿ Essa tendência foi em grande parte contida pela ausência de vida democrática ¿ completa a professora Maria Tereza Sadek, do Departamento de Ciências Políticas da USP.

Pelos números do governo, há um processo para cada sete brasileiros. A estimativa, no entanto, não quer dizer que as pessoas tenham acesso à Justiça. No Brasil, os recursos ao Judiciário, que lotam gabinetes de juízes e tribunais, são um negócio usado por empresas e uma manobra muitas vezes adotada pelo próprio governo. O aumento da demanda não representa a democratização da Justiça, dizem especialistas.

¿ O processo democrático não ocorreu na Justiça e o grande vilão é o Estado ¿ diz Reale Jr.

Segundo estimativas, 90% das ações estão relacionadas ao poder público e a um grupo pequeno de empresas, na maioria prestadoras de serviços. O grosso da população fica com os 10% restantes.

¿ Na verdade, o número de processos é grande, mas são poucas empresas e o governo que se utilizam do Judiciário. A solução de problemas do Judiciário passa pela necessidade de diminuir o número de processos. Temos de descongestionar os tribunais e em relação a isso foi feito pouca coisa ¿ afirma o secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Sérgio Renault.

¿ Pode-se sustentar que o sistema judicial estimula um paradoxo: demandas de menos e demandas de mais. Ou seja, de um lado, expressivos setores da população acham-se marginalizados dos serviços judiciais. De outro, há os que usufruem em excesso da Justiça, gozando das vantagens de uma máquina lenta, atravancada e burocratizada ¿ conclui Maria Tereza.

Um exemplo de experiência bem sucedida nos últimos 20 anos são os juizados especiais. Para Renault, o instrumento mais importante de acesso da população de baixa renda à Justiça. Os estaduais são os grandes responsáveis pelas relações de consumo, onde são julgadas as causas de menor valor e, no caso dos criminais, os crimes de menor poder ofensivo. Nos federais, é onde se concentram as ações referentes à Previdência.

A lei 9.099 de 1995, que criou os juizados especiais, este ano faz dez anos. A legislação estabeleceu um limite de 40 salários-mínimos para as ações. Nos processos que envolvem menos de 20 salários-mínimos, o interessado não precisa de advogado.

¿ No Judiciário, é a coisa mais importante que ocorreu. A população ficou mais perto. Não só aproximou como simplificou ¿ diz a juíza Denise Kruger Pereira, presidente do Fórum Nacional dos Juizados Especiais.

Além do acesso difícil, a morosidade e ineficiência dos processos, a falta de estruturas material e humana, os equívocos na legislação processual e a postura encastelada de alguns juízes ajudam a forjar na sociedade uma imagem negativa do Judiciário. Calcula-se que se a partir de hoje não fosse apresentado nenhum novo caso, o Judiciário levaria entre cinco e oito anos para solucionar as ações pendentes.

A professora Maria Tereza Sadek afirma que a reforma do Judiciário aprovada pelo Congresso depois de 13 anos de tramitação, embora insuficiente, é um bom sinal de que as mudanças na Justiça estão em curso e que o processo é irreversível.

¿ Criou-se a percepção de que é um tema relevante, que tem que ser tratado pelo poder público e que é possível resolver os problemas. As mudanças virão, quer se queira ou não ¿ afirma Maria Tereza.

O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, admite que o sistema judiciário ainda não foi totalmente democratizado. Segundo ele, para aprimorá-lo, o governo está agindo em três frentes: reformas constitucionais, mudanças infraconstitucionais e readequação da gestão administrativa.

¿ Houve avanços desde a Constituição de 1988 e pretendemos agora que se acelerem. Depois de aprovarmos uma reforma que estava parada há 13 anos, logo na semana seguinte, enviamos ao Congresso 26 projetos de lei para simplificar o sistema. Além disso, a reforma aprovou a criação do Conselho Nacional de Justiça, que vai concentrar poderes de correição, planejamento estratégico, técnico e mudanças de gestão ¿ afirma o ministro da Justiça.

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Rodrigo Collaço, acha que a grande transformação aconteceu no perfil dos processos. Para ele, as pessoas passaram a conquistar a sua cidadania na Justiça, em ações que discutem dos preços das passagens de ônibus aos reajustes de mensalidades. Em parte, esse movimento é atribuído à criação do Código de Defesa do Consumidor. Ele diz que vem daí parte dos problemas:

¿ Quando a sociedade descobre o Judiciário como meio de acesso à cidadania, ela encontra um poder desestruturado. Desaparelhado do ponto de vista material e de ferramentas para atuação processual. Os processos não terminam. Cabe recurso sobre tudo ¿ diz Collaço, que apóia a reforma processual.

As Defensorias Públicas são consideradas um importante instrumento de democratização do Judiciário.

¿ É a mais importante forma de democratizar. É o advogado do povo ¿ diz a professora Maria Tereza.

¿ Existe uma preocupação por parte do governo. Por isso, incluímos na reforma do Judiciário a autonomia das Defensorias Públicas e sua criação nos estados em que ainda não existem, como é o caso de São Paulo ¿ afirma o ministro.

Pesquisa feita pelo Ministério da Justiça em dezembro de 2004 mostra que o uso da Defensoria Pública ainda é incipiente, passados 17 anos da promulgação da Constituição, que criou esse instrumento. Em média, os estados gastam apenas R$3,91 per capita ao ano com advogados públicos. As defensorias estão instaladas em apenas 42,3% das comarcas e o maior percentual de cidades não atendidas está justamente nas regiões com pior Índice de Desenvolvimento Humano.