Título: A violência policial e o Estado de Direito brasileiro
Autor: Soraya Aggege
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 6
Uma significativa parcela da população se mostra tolerante com a tortura
A Constituição de 1988 coroou o processo de restabelecimento do Estado Democrático de Direito no Brasil, consagrando uma das mais modernas e abrangentes declarações de direitos do mundo contemporâneo.
Entretanto, é forçoso reconhecer que esses direitos ainda não se concretizaram para a maioria da população, que convive com um quadro alarmante de exclusão social. Essa discrepância talvez seja um dos maiores desafios que a sociedade brasileira precisa vencer para consolidar os fundamentos de nossa democracia.
Nesse ambiente de carências sociais generalizadas destaca-se a questão da violência, expressa pelos elevados índices de criminalidade, que deixa acuada e traumatizada boa parte da população, principalmente nos grandes centros urbanos.
Na democracia, a luta contra o crime deve se dar dentro dos limites legais e constitucionais. Contudo, é fato notório que importantes segmentos da polícia e da própria sociedade pensam exatamente o contrário, o que explica, mas não justifica, as constantes demonstrações de arbítrio por parte de agentes do Estado, notadamente policiais. E a mais contundente face dessa postura ilegítima do aparelho repressivo estatal é, sem dúvida alguma, a tortura, que está longe de ter sido banida das práticas cotidianas de importantes setores do Estado brasileiro, a despeito do que estabelece a Constituição, que assegura expressamente que ¿ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante¿.
Freqüentemente tomamos conhecimento do emprego da tortura por parte de policiais, civis e militares, guardas municipais, agentes penitenciários e monitores de entidades que abrigam adolescentes infratores. Nem mesmo o advento da Lei 9.455, de 7 de abril de 1997, que deu um novo e mais rigoroso tratamento penal aos casos de tortura, foi suficiente para reverter essa vergonhosa situação.
O quadro jurídico-institucional existente no país proporciona meios bastante razoáveis para que possamos, com ações e iniciativas articuladas, promover a real aplicação da lei da tortura.
A reflexão acumulada por aqueles que se batem contra a tortura e o arbítrio policial aponta para a imperiosa necessidade de se priorizar duas frentes principais de luta: a primeira, a impunidade, que ainda beneficia a generalidade dos maus agentes do Estado; a segunda, a questão cultural consistente no fato de que uma significativa e não desprezível parcela da população brasileira se mostra tolerante com a tortura, cultura essa que perpassa as instituições públicas e os nossos governos, em menor ou maior grau.
Esse é o itinerário pelo qual caminharemos efetivamente para a eliminação do arbítrio policial e da tortura, projetando o Brasil entre as nações que elegeram o respeito à dignidade humana como um dos pilares da sua existência.
CARLOS CARDOSO DE OLIVEIRA JÚNIOR é promotor de Justiça e assessor especial de Direitos Humanos da Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo