Título: SÍMBOLO DA DITADURA, TORTURA SOBREVIVE COMO RECURSO POLICIAL
Autor: Soraya Aggege
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 6

Instrumento mais atroz da ditadura, a tortura está em pleno vigor nos órgãos de segurança pública do país, quatro anos após ter se tornado crime inafiançável no Brasil democrático. É o que revela levantamento recente da Campanha Nacional Contra a Tortura, mantida por ONGs e pelo governo federal.

Foram checados 2.206 casos, entre outubro de 2001 e fevereiro de 2004. A fonte foi o SOS Tortura, que recebeu 25.698 denúncias no período e hoje está desativado. Os dados foram cruzados com os do relatório ¿Brasil nunca mais", sobre a ditadura. O resultado é uma radiografia tenebrosa:

¿ Os motivos não são mais políticos, pois o objetivo hoje é tirar informações de suspeitos. Mas os instrumentos se repetem: pau-de-arara, palmatórias, choques, afogamentos. Do mesmo modo que na ditadura, os agentes são quase todos ¿homens da lei¿ ¿ diz Rosiana Queiroz, coordenadora do Movimento Nacional de Direitos Humanos, que fechou o levantamento.

Do total de casos, 90% das vítimas foram torturadas por agentes do Estado, principalmente policiais civis (31,4%), militares (30,6%) e carcereiros (14%). A maioria, 64,6%, no interior, principalmente nos estados de Minas, São Paulo, Pará e Bahia. Outra radiografia mostra a impunidade dos torturadores: do total de casos denunciados ao Ministério Público (78%) e às corregedorias, até hoje somente dez foram condenados pela Lei da Tortura.

Além dos números, e sem o disque-tortura para, pelo menos, integrar a estatística, as vítimas vivem com medo de expor suas histórias por causa da impunidade. Mas não é muito difícil encontrá-las. Bem ao lado da casa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em São Bernardo do Campo, um caso atraiu a atenção da Justiça.

Um grupo de cinco rapazes e uma moça foi barbaramente torturado por 20 policiais, no ano passado. Quatro dos policiais agora respondem a um processo, mas ainda em liberdade. Os jovens foram detidos, suspeitos de formar a chamada "quadrilha da loira", que furtava carros na cidade. O agravante é que um policial tivera equipamentos de seu carro furtados.

Como na ditadura, os jovens foram tirados de suas casas, sem direito de defesa algum. Ficaram desaparecidos por mais de uma semana, apesar das buscas e do desespero de suas famílias. Depois, encontrados, eles contaram que foram levados para diversas delegacias.

A moça, de 19 anos, tinha como indício contra ela o fato de ser loira e de ter um colega de 24 anos dono de um carro equipado. Foi torturada com um alicate, apertado várias vezes sobre os bicos de seus seios. A moça ficou traumatizada, não consegue contar sua história. O dono do carro, que é gráfico, foi torturado por mais de 24 horas seguidas, com o mesmo alicate apertado sobre os dedos da mão, palmatórias, socos e chutes.

¿ Foi uma coisa digna da ditadura. Já tinha lido sobre isso, mas nunca imaginei que poderia acontecer comigo. Não acho que o problema seja a nossa democracia, mas sim os maus policiais. Não foi por eu ser pobre ou rico. Poderia ser com qualquer um. E essa história estragou as nossas vidas ¿ conta a jovem.

Os jovens ficaram 110 dias presos, até que a polícia prendeu outro grupo sob acusação idêntica. Quando a moça e seus amigos foram depor, o juiz perguntou por que todos tinham sinais de sangue nos olhos. A tortura foi então revelada. Quatro policiais foram presos por dois meses. Agora, estão todos soltos e os jovens temem sua vingança.

Trinta anos atrás, Carlos Gilberto Pereira, hoje com 56 anos, foi torturado de maneira semelhante, por militar na Ação Popular. Hoje ele é conselheiro do Grupo Tortura Nunca Mais e acompanha casos de vítimas da tortura na democracia.

¿ A tortura de hoje é uma extensão da ditadura, inclusive com os mesmos métodos, da Escola da América (montada na época pelos Estados Unidos, no Panamá). Penso que não se faz democracia com tortura, nem com tanta impunidade¿ adverte Carlos.

Preso político por três anos, o próprio secretário nacional dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, sentiu na pele a atrocidade policial.

¿ Entendo que a tortura é um crime de Estado. E eu temi que a Lei da Tortura não pegasse. Mas pegou. Hoje há uma coibição. O problema não é o número de casos, mas a impunidade. E creio que ela está diminuindo ¿ diz ele..

Segundo o secretário, neste ano o Comitê de Abolição da Tortura (CAT) da ONU virá ao Brasil para averiguação.

¿ Eles virão no meio do ano, e, com certeza, encontrarão um quadro muito melhor. Embora ainda insatisfatório, o combate à tortura melhorou, com relação à visita do relator da ONU Nigel Rodley em 2000 ¿ afirma Nilmário.