Título: A LUTA CONTRA AS OUTRAS FORMAS DE MANDAR CALAR A BOCA
Autor: Fernanda da Escócia e Flávio Freire
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 7

Há 20 anos, o homossexualismo era considerado doença pelo Ministério da Saúde, as mulheres lutavam por estabilidade no trabalho durante a gravidez e o movimento negro brigava para que o país, considerado exemplo de democracia racial, admitisse a existência de racismo. A redemocratização na política trouxe a explosão dos movimentos das chamadas minorias ¿ movimentos que já existiam, mas tiveram, com o fim da ditadura, o palco perfeito para se disseminar pelo país. Lutas reprimidas pelo regime militar e muitas vezes consideradas secundárias pela esquerda encontraram sua hora, pois a democracia político-representativa abriu espaço para questionar outras práticas autoritárias na sociedade.

Quem optava pela luta pública tinha de conviver com o preconceito:

¿ Diziam que a gente não tinha o que fazer ¿ lembra Vera Soares, do Unifem (Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher). Ela destaca que o movimento de mulheres muito influenciou a redemocratização, destacando-se nas campanhas da anistia e contra a carestia.

Quem viveu essa época passou por militâncias múltiplas. O economista Marcelo Paixão, de 38 anos, se filiou ao PT aos 17 anos. Foi militante secundarista, universitário e sindical, até entrar no movimento negro ¿ um dos mais perseguidos pela ditadura. Hoje, prestes a se desfiliar do PT e doutorando pelo Iuperj, Paixão analisa:

¿ Na época da ditadura, havia uma primazia na luta. O mais importante era alcançar a democracia, ou o socialismo, e tudo tinha que ficar para depois desse dia final. Não se via que o processo de construção da democracia passava por outras lutas, que combatiam práticas sociais autoritárias. Havia outras formas de mandar calar a boca, além do aparato autoritário. Não bastava mudar o computador, era preciso mudar o programa.

Para o presidente da Fundação Cultural Palmares, Ubiratan Castro, a ditadura foi marcada pela repressão dos movimentos sociais em nome da unidade nacional:

¿ Na repressão, era impossível falar de diversidade racial. A transição para a democracia foi marcada por mecanismos que permitiam a igualdade de expressão.

Cláudio Nascimento, de 34 anos, secretário de Direitos Humanos da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros), completa este ano 20 anos de militância, iniciada no movimento secundarista. Diz que o homossexual é um cidadão de segunda classe, apesar de pagar impostos e levar para as ruas quase três milhões de pessoas nas paradas gays em 53 cidades brasileiras. Só a de São Paulo atrai 1,5 milhão de pessoas:

¿ Ainda não incluímos na Constituição a proibição da discriminação por orientação sexual. Dizem que está incluída na questão de gênero, mas não é a mesma coisa.

Nascimento diz que o Congresso está mais atrasado que a Justiça ¿ que reconheceu casos de direito a herança e inclusão em plano de saúde entre casais gays, bem como o direito de lésbicas manterem a guarda dos filhos em caso de separação. O projeto que permite a união estável entre pessoas do mesmo sexo tramita no Congresso desde 1995.

Outro projeto engavetado no Congresso desde 1991 é o novo Estatuto do Índio ¿ o atual é de 1973. A mudança no Estatuto é considerada um dos instrumentos capazes de conter a especulação em terras indígenas, diminuir a violência e retirar o índio da condição de tutelado, tornando-o responsável por seus atos ¿ analisando, em cada caso, seu grau de contato com a civilização. Hoje o índio é impedido de exercer alguns atos da vida civil, como receber empréstimos, e só pode agir sob tutela da União.

Vinte anos depois da redemocratização, as minorias tomaram o noticiário. As mulheres são maioria: representam 51% da população e comandam 25% dos domicílios. A homossexualidade já não é considerada doença, e o Brasil reconheceu oficialmente a existência do racismo. Entre as novas demandas, ações afirmativas para negros e portadores de deficiência.

Impulsionado pela epidemia de Aids, ganhou força o movimento dos soropositivos. Há 20 anos surgia a primeira ONG/Aids do Brasil, o Gapa (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids) ¿ hoje são quase 600. Em 1996 o coquetel de anti-retrovirais passou a ser distribuído pela rede pública. A doença já perdeu em muito a pecha de ¿peste gay¿, e a briga dos soropositivos é para que o governo banque os remédios para doenças resultantes dos efeitos colaterais do coquetel.

Para as mulheres, o aborto segue na ordem do dia:

¿ As mulheres ainda não têm o controle do corpo. O aborto é direito. Ninguém é a favor do aborto, mas defendemos que a mulher não seja criminalizada. No caso dos fetos anencéfalos (sem cérebro), é absurdo manter uma gravidez que não vai prosperar ¿ diz Vera Soares, do Unifem.

Vera destaca como outra reivindicação o combate à violência ¿ uma bandeira que une negros, homossexuais e indígenas. A discriminação racial, por exemplo, só passou a ser considerada crime em 1989 ¿ até então, vigorava a lei Afonso Arinos, de 1951, primeira a combater o racismo no Brasil e que considerava o preconceito contravenção. Levantamento de 2001 do Ministério das Relações Exteriores contabilizava menos de 150 processos por crime de racismo no Brasil. No Rio e em São Paulo houve 25 ações penais entre de 1995 e 1999, período em que a pesquisa foi realizada.

Quando o assunto é diversidade e pluralidade, o caminho a percorrer é longo. As outras formas de mandar calar a boca, os outros autoritarismos, têm raízes profundas na sociedade brasileira. São assunto, quem sabe, para os próximos 20 anos.