Título: Por uma democracia que garanta os direitos de todos
Autor: WANIA SANT¿ANNA
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 7

A participação popular demonstra o desejo da sociedade brasileira de mudar

Todos os bons textos da ciência política brasileira não deixaram de notar que, nas duas últimas décadas, o processo de redemocratização pelo qual o país passou constitui um marco decisivo não apenas na esfera política, como nos âmbitos da economia e dos arranjos sociais. A recomposição, fortalecimento e liberdade de atuação das instituições públicas ¿ partidos, Congresso, Poder Judiciário e eleições diretas para o exercício das funções do Poder Executivo ¿ são exemplos que não nos deixam dúvidas sobre o caráter exemplar de um ambiente de redemocratização.

Em todas essas situações, a participação popular e os seus esforços de organização devem ser lembrados como fatos que demonstravam o interesse da sociedade brasileira em operar mudanças sociais e políticas de caráter qualitativo, incluindo, por exemplo, o tratamento público de assuntos até então pouco mencionados ou negligenciados. Esse é o caso das mulheres, dos afro-descendentes, dos moradores das periferias urbanas, dos trabalhadores rurais ¿ grupos sociais que, no processo de redemocratização, tiveram também a oportunidade de trazer a público o que denominam agendas específicas.

Para as organizações de mulheres isso significou, por exemplo, o combate à violência doméstica e sexual e a implementação de uma política de saúde reprodutiva de caráter integral e não apenas preocupada com o controle populacional. Para os afro-descendentes, o combate à discriminação racial e ao racismo, além da elaboração de políticas específicas de promoção social. Para os moradores das periferias urbanas, o acesso à moradia e a uma infra-estrutura adequadas. Para os trabalhadores rurais, o acesso à terra e ao crédito e, para as trabalhadoras rurais, o reconhecimento de suas atividades produtivas e o direito à livre sindicalização.

Enfim, com a emergência desses atores sociais, e suas demandas específicas, o processo de redemocratização propiciou o debate sobre valores e sobre padrões culturais e tem pressionado de forma contínua para o estabelecimento de mudanças qualitativas na forma de elaborar e implementar políticas públicas. O atendimento às reivindicações elaboradas pelo movimento de mulheres, pelo movimento negro, pelas organizações que lutam por reforma urbana, pelo acesso à terra e pela democratização no campo tem exigido, por exemplo, maior aprimoramento da gestão das políticas sociais e, na seqüência, um padrão mais equânime de distribuição dos recursos públicos para superação das desigualdades sociais.

Obviamente, esse novo ambiente de participação não é livre de tensões, desconfianças e retardamentos. Toda sorte, e felizmente, parece ser um caminho virtuoso no qual qualificamos a cidadania e exercitamos o diálogo como o caminho mais adequado ao país e à seguridade das gerações futuras. Ainda temos muito o que fazer e isso é, igualmente, inegável. A situação de marginalização e degradação humana a que estão submetidos os povos indígenas, o estado de vulnerabilidade da população jovem dos grandes centros urbanos ¿ especialmente dos jovens afro-descendentes ¿ a necessidade de revermos as ações de segurança pública para que essas se caracterizem como políticas de seguridade social são apenas alguns dos desafios. Enfim, são desafios que nos são postos porque nos qualificamos, a cada ano, para o seu enfrentamento e para, finalmente, instituirmos no Brasil a democracia e o respeito aos direitos sociais, políticos, econômicos e culturais da população brasileira.

WANIA SANT¿ANNA é historiadora, pesquisadora de relações e de gênero, é ex-secretária de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro