Título: A ciência no Brasil pós-ditadura
Autor: Luciana Brafman
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 11

Nem tudo são flores e algodão doce

Nenhuma pesquisa de opinião detectaria mais do que traço das visões de mundo que depreciam a importância da ciência para a Humanidade. Apareceriam pessimistas lembrando o papel que as conquistas da ciência desempenharam no aperfeiçoamento dos armamentos, no avanço da poluição e da degradação ambiental e em muitas doenças produzidas pela civilização tecnológica. Mas no balanço dos argumentos, chegaríamos à conclusão de que, sendo uma atividade humana, a ciência ¿ como a arte, a filosofia, a pesca ou a construção civil ¿ pode ser bela ou horrenda, boa ou perversa, construtora ou destruidora. E é justamente a democracia que dita o ziguezagueante rumo da beleza, da ética, do progresso social e do enriquecimento humano.

Foi assim que se passou no Brasil democrático dos últimos 20 anos. A partir dos investimentos da ditadura, a democracia trouxe oscilações financeiras para a atividade científica, mas esta finalmente cresceu nas universidades e em outras instituições (quase todas públicas, diga-se de passagem) e pela primeira vez posicionou o país na lista de nações criadoras de conhecimento. Surgiu um sistema articulado de financiamento da ciência na esfera federal e em quase todos os estados. Desenvolveu-se uma rede de formação de recursos humanos ¿ a pós-graduação ¿ que já oferece para instituições e empresas um número expressivo de doutores qualificados para empregar a ciência em todos os setores da atividade social. E as mais inovadoras tecnologias passaram a mover a economia brasileira, possibilitando grandes avanços na produção de grãos e commodities em geral, na exploração de petróleo no oceano, na indústria aeronáutica e na oferta de bens e produtos de consumo como carros, aparelhos de som e celulares.

Mas nem tudo são flores e algodão doce. Ainda somos um país com fome, insalubridade e mortalidade infantil, alto grau de violência, ignorância e analfabetismo, instabilidade econômica e injustiça social. Perdemos feio na comparação com países da nossa faixa econômica, e mais feio ainda na confrontação com os países dominantes. O Brasil produz atualmente cerca de 1,5% dos artigos científicos publicados nas revistas internacionais, contra 2,1% da Coréia do Sul e 33,6% dos Estados Unidos. Temos menos de um cientista para cada mil trabalhadores, contra 6,3 na Coréia e 8,6 nos Estados Unidos. Investimos cerca de 1% do PIB anualmente em ciência e tecnologia, proporção distante dos quase 3% da Coréia e 2,5% dos Estados Unidos. E só conseguimos oferecer educação superior a 20% da população, contra 80% na Coréia e nos Estados Unidos. Por isso mesmo tiramos um vergonhoso último lugar dentre as nações no desempenho de nossos alunos em ciência e matemática, conforme publicaram os jornais recentemente.

É verdade que o Brasil democrático nos trouxe maior compreensão social das possibilidades da ciência. Reflexo disso é a recente aprovação da pesquisa sobre células-tronco pelo Congresso. Mas a democracia nos brindou também com governantes que defendem (e praticam!) o ensino do criacionismo bíblico nas nossas escolas públicas que a Constituição quer laicas.

Então, não nos iludamos! Falta muito para chegarmos lá. Falta muito esforço democrático de convencimento social por meio da divulgação científica, falta educar a população para que dela surjam tantos cientistas quanto jogadores de futebol, falta sensibilizar os empresários para usar a ciência em benefício de suas empresas...

Faltam mais uns vinte anos de democracia!

ROBERTO LENT é neurocientista, professor-titular do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ