Título: Pobreza, desigualdade e democracia
Autor: SÉRGIO BESSERMAN
Fonte: O Globo, 15/03/2005, Democracia 20 anos, p. 13

Reduzir a desigualdade é um valor fundamental

A História brasileira dos últimos 20 anos gerou impactos diferentes sobre a pobreza e a desigualdade, se forem utilizados apenas a renda e a distribuição de renda para medir as mudanças.

Segundo a linha de pobreza calculada pelo IPEA, os percentuais da população brasileira que podem ser definidos como indigentes (extrema pobreza) ou pobres reduziram-se significativamente com a estabilização da economia.

Antes do controle da inflação, os percentuais de indigentes e de pobres situavam-se, respectivamente, ao redor de 20% e 43%. Com o Plano Real, esses percentuais caem para cerca de 14% e 33%, mantendo-se relativamente estáveis desde então.

Trata-se de um avanço considerável (dez milhões de brasileiros deixaram de ser pobres), embora a permanência de cerca de 25 milhões de brasileiros abaixo da linha de indigência e de cerca de 60 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza continue a significar um patamar inaceitável para um país com uma renda igual a nossa.

Grande parte da pobreza no Brasil é explicada pela péssima distribuição de renda. Segundo estudo dos professores Ricardo Paes e Barros e Ricardo Henriques, dada a renda per capita do país, o percentual de pobres deveria ser de 8% da população (e não os 33% citados), caso nossa distribuição de renda fosse igual à verificada, em média, no resto do mundo.

A desigualdade é grande porque tivemos a capacidade de gerar muita riqueza, mas ela foi apropriada, ao longo de séculos de História, por uma parcela muito pequena da sociedade. Usando como medida exclusivamente a renda, a desigualdade tem-se mantido estável no Brasil, ainda que, remando contra a maré do que aconteceu em quase todos os países do mundo na ultima década, o índice de Gini (indicador mais utilizado para medir a distribuição de renda) tenha tido pequena melhora no país. Se, entretanto, forem considerados outros indicadores, como o acesso a educação, saneamento, saúde, coleta de lixo, entre outros, a desigualdade reduziu-se significativamente desde a redemocratização do país.

É muito difícil combater a desigualdade de renda. Reduzi-la requer desconstruir os seus mecanismos de reprodução, basicamente o mau funcionamento do ¿mercado de poder¿ (tornar mais substantiva a democracia) e da Justiça, e redistribuir ativos capazes de gerar renda de forma sustentável.

Tornar a sociedade brasileira menos desigual deveria ser um valor fundamental a ser perseguido nas próximas décadas, apesar da dificuldade do objetivo. Em primeiro lugar porque mitigar a miséria com políticas assistencialistas e reduzir a pobreza exclusivamente por meio do crescimento econômico, será muito lento e ineficaz. Em segundo lugar, porque é uma exigência do avanço da democracia. Pode parecer paradoxal, mas quanto mais rica for a nação e mais educada a população, mais a sociedade brasileira será intolerante com a desigualdade.

Nesse contexto, o Brasil está diante de uma grande oportunidade, que se converte em uma grande ameaça se não for aproveitada. No século XXI , a mesma variável que é absolutamente decisiva para a consolidação da democracia e para o crescimento econômico nas próximas décadas é, simultaneamente, o ativo que mais facilmente (comparativamente aos demais) pode ser redistribuído: o conhecimento.

SÉRGIO BESSERMAN é diretor do Instituto Pereira Passos e ex-presidente do IBGE