Título: Feito e desfeito
Autor: Miriam Leitão
Fonte: O Globo, 16/03/2005, Panorama Político, p. 22

O Banco Central sobe os juros para conter a demanda e segurar a inflação. Os juros atraem mais dólares, que derrubam o câmbio. O BC, então, compra reservas para segurar o dólar. Isso aumenta a quantidade de reais na economia, que pode alimentar a inflação. Os juros sobem para conter a demanda, o governo cria formas de contornar os juros com empréstimos consignados em folha e isso aumenta a demanda. Como Penélope, de Ulisses, o governo tece e desfaz o que ele mesmo teceu.

A política econômica tem dois objetivos. Quer conter a inflação e aumentar o ritmo de crescimento. Ambos são justos e bons. Mas, neste momento, são contraditórios e se anulam. O resultado é que os juros pesam sobre o maior dos devedores brasileiros: ele mesmo, o governo.

Os empréstimos em folha e com garantia da aposentadoria são formas inteligentes de contornar o principal constrangimento da economia brasileira: a brutal e destoante taxa de juros. Assim, os trabalhadores e aposentados podem pagar um pouco menos pelo dinheiro, a mais cara das mercadorias brasileiras. O problema é que, no outro lado do barco, o BC rema no sentido oposto; quer reduzir o consumo para evitar que as compras confirmem os preços elevados pelas empresas.

Com os empréstimos consignados, já vieram para a economia R$12 bilhões. Isso é uma das explicações do sucesso que pôde ser comemorado ontem, o 15º mês consecutivo de aumento das vendas do comércio, em volume. Além de aumentar o consumo, o que alegra varejo e indústria, os créditos ficam mais baratos e se ampliam. Excelente, porque, no Brasil, o crédito para pessoas físicas é baixo demais. O brasileiro se acostumou a comprar à vista ou a acreditar na mentira da compra em vezes sem juros. Um enorme contingente de trabalhadores fez uma escolha inteligente: pegou o empréstimo, pagou dívidas antigas muito caras, para ficar com mais renda disponível para as compras.

Ao fugir dos juros altos, as empresas batem à porta do BNDES. Os juros lá são muito mais baixos do que a taxa básica, mas até maiores que em muitos países. Os empresários se financiam e conseguem fazer seus investimentos. Ótimo. Exceto pelo fato de que o governo, o grande endividado, pega empréstimo à taxa de 18,75% ¿ ou 19,25% a partir de hoje à noite ¿ e empresta a 9,75%, na TJLP. Mau negócio.

A dívida do governo é alta. Para reduzi-la, faz-se superávit primário. Mais do que alta, é cara. E, quando os juros sobem, fica ainda mais cara. O governo tece com a linha do superávit primário uma redução da dívida, que depois desfaz quando sobe os juros.

O dilema seria fácil se houvesse um inimigo claro a combater. O inimigo, no caso, seria o BC. Bastaria, então, forçá-lo a não elevar os juros. O problema é que a economia não é explicada com uma visão maniqueísta. O bem e o mal se misturam, trocam de lugar, confundem-se.

O Banco Central eleva os juros porque tem que perseguir uma meta de inflação. Foi assim que nos livramos do câmbio-quase-fixo da primeira fase do real. A meta é dada pelo próprio governo: inflação sob controle e de tendência declinante. Mas os preços estão teimosos ao comando do BC. Parte da teimosia se alimenta na demanda. Todo mundo quer que haja consumo, encomendas à indústria, mais emprego e renda. O problema é que os incentivos ao consumo tiram força do terrível remédio das taxas de juros. Como o purgante é forte, os consumidores e empresas tentam fugir dele. O próprio governo abre as portas para a fuga com os juros subsidiados do BNDES e os facilitados dos empréstimos consignados. Eles fogem e o governo fica sozinho engolindo o purgante da Selic, que subirá hoje pela sétima vez consecutiva.

Esse faz e desfaz está em toda a política econômica. Quando aumenta seus gastos correntes, o governo está jogando mais dinheiro na economia, mais lenha na fogueira da inflação que tentará conter depois com mais juros, que aumentam seu próprio endividamento.

A economia brasileira já naufragou várias vezes por não resistir a cantos sedutores das saídas fáceis, ou ter batido com a embarcação em pedras, ou ter sido colhida em pleno mar por tempestades externas. Na hora do mar calmo, é bom corrigir as contradições do plano de navegação.

A política econômica tem acertado no geral. Escolheu aumentar o superávit primário, reconhecer que o governo tem dívidas e que elas têm que ser honradas, escolheu manter a meta de inflação como âncora, o câmbio flutuante e a autonomia de fato do Banco Central. Escolheu desfazer os velhos nós com as chamadas reformas microeconômicas.

Tem razão quando tenta evitar a inflação, tem razão quando tenta incentivar o consumo, tem razão quando tenta facilitar a ampliação do crédito, tem razão quando concede empréstimos de longo prazo com taxas que podem ser pagas. Tem razão em tudo, mas não tem razão no todo. Tem que escolher o que buscar a cada momento; do contrário, ficará fazendo e desfazendo o mesmo manto. Penélope sabia que esperava por Ulisses. O faz e desfaz de agora parece falta de diálogo da política econômica consigo mesma.