Título: RESSACA DA FARRA
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Fonte: O Globo, 18/03/2005, O País, p. 6

Poucas vezes ficou tão evidente a fragilidade do contribuinte como agora. Já massacrado pela maior carga tributária praticada no mundo entre as nações emergentes, o pagador de impostos ao Estado brasileiro não se vê apenas acossado pela ameaça objetiva de ter de recolher mais tributos, por meio da MP 232 ¿ aquela do golpe tributário desfechado na virada do ano. Outro grande risco que corre o contribuinte vem da assustadora onda de aumento de gastos públicos, por decisões do Executivo e agora também por atos do Poder Legislativo. É como se fosse dito ao cidadão que ele tem duas péssimas notícias: uma, já conhecida, refere-se ao peso atual dos tributos; e a segunda é que ele não deve ter esperanças de qualquer alívio no arrocho tributário, diante das despesas adicionais que estão sendo geradas para ele pagar.

A mais recente conspiração bem-sucedida contra o bolso do cidadão e o caixa das empresas transcorreu na quarta-feira, na Câmara dos Deputados. Quando se esperava que a pressão da opinião pública contrária ao aumento dos subsídios dos deputados ¿ uma promessa de Severino Cavalcanti na campanha pela presidência da Câmara ¿ conteria por algum tempo a tendência dos políticos de se autoconcederem benefícios, Severino, com a sua caneta e a da Mesa da Casa, aumentou em 25% a verba de gabinete dos deputados, de R$35.350 para R$44.187.

Com isso, cada parlamentar custará, por mês, R$88.312,75 para o contribuinte. Mas como o Senado deve inflar o salário dos servidores do Congresso em mais 15%, essa fatura paga pelos impostos passará para R$95.362,75.

Os ataques ao Tesouro Nacional ¿ cujo dinheiro é suprido pelo contribuinte, sempre é bom lembrar ¿ multiplicam-se e partem também de propostas aprovadas pelo voto de parlamentares em plenário e comissões. Há dois graves exemplos emblemáticos do perigo por que passam as contas públicas. No dia anterior ao da canetada milionária de Severino e companheiros de Mesa, o plenário da Câmara contrabandeou para a emenda constitucional da reforma da previdência do funcionalismo, conhecida por PEC paralela, uma grave subversão hierárquica: por pressões de lobbies, os deputados deram base legal a que delegados, agentes fiscais tributários e advogados dos estados recebam até 90,25% do salário do ministro do Supremo Tribunal Federal. Na prática, esses servidores, caso o Senado concorde com a aberração, passarão a receber mais que seus chefes de cargo mais elevado, os governadores. Na verdade, essa emenda é uma ameaça aos orçamentos dos estados e, por tabela, às próprias metas de superávit primário da União.

A mais ameaçadora manobra contra os contribuintes e as contas públicas foi praticada na semana passada, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, com a aprovação de projeto de lei que amplia os critérios de enquadramento na Lei Orgânica de Assistência Social, a Loas. Aceito pelos deputados em caráter terminativo ¿ ou seja, não precisa ir ao plenário ¿ o projeto aumenta o nível de renda familiar para que pessoas idosas possam receber um salário-mínimo mensal, mesmo sem ter contribuído um centavo sequer para a Previdência.

Antes de votar, ninguém teve o trabalho de calcular o efeito da medida sobre o Orçamento. Pois as primeiras estimativas indicam uma conta adicional endereçada aos contribuintes de R$15 bilhões este ano e R$21 bilhões no ano que vem. Ora, significa criar, de uma hora para outra, uma despesa equivalente a mais de dois programas Bolsa Família ainda em 2005 e pouco mais de três idênticos em 2006. Implodirá o Orçamento da União.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva alerta que não permitirá uma ¿farra do boi¿ com o dinheiro público por causa das eleições. Mas a farra está em franca evolução, e dentro do próprio governo: os gastos com custeio da máquina burocrática e folha salarial de servidores crescem mais que a inflação e à frente do PIB. Só a folha, em dois anos de governo, deu um salto de 30%, com os reajustes concedidos, a contratação de 42 mil funcionários e a criação de 1.400 cargos comissionados, certamente destinados a militantes.

O presidente se mostra confortável por manter índices de popularidade acima das turbulências do governo. Mas o preço pela farra dos gastos terá de ser pago por ele. Em algum momento, o presidente precisará se definir entre a política de austeridade fiscal e monetária do Ministério da Fazenda, responsável pela estabilidade da economia, e o movimento em direção contrária, dos gastos desenfreados, executado por parte do Congresso e uma ala do seu governo.

Lula não deve ter dúvidas: no final do túnel da farra da gastança o esperam a inflação, juros ainda mais altos e uma economia novamente estagnada.