Título: A PENÍNSULA IBÉRICA VOLTOU A ACREDITAR
Autor: Aloizio Mercadante
Fonte: O Globo, 19/03/2005, Opinião, p. 7

Na sua obra ¿A jangada de pedra¿, o genial José Saramago imagina que a Península Ibérica se desprende do resto da Europa e passa a navegar pelo Oceano Atlântico. Trata-se, evidentemente, de uma metáfora corrosiva sobre o estranhamento da cultura ibérica em relação ao Norte Europeu. De fato, Espanha e Portugal já foram vistos injustamente como países atrasados e culturalmente alheios à racionalidade cartesiana e à ética protestante do trabalho que teriam prevalecido no Norte da Europa. Entretanto, hoje em dia ninguém mais duvida da pujança econômica e cultural das nações ibéricas. Com efeito, Espanha e Portugal passaram por transformações notáveis nas últimas três décadas e colocaram-se na vanguarda das mudanças políticas na Europa. Pois bem, a recente e histórica vitória de José Sócrates, do Partido Socialista português, nas eleições legislativas, precedida pela extraordinária ascensão ao poder de José Zapatero, do PSOE, transformaram a Península Ibérica no centro das atenções de todos aqueles que desejam conciliar desenvolvimento econômico com justiça social. A jangada de pedra de José Saramago transformou-se na jangada da esperança de José Sócrates e José Zapatero.

Nesse sentido, a comparação da ascensão ao poder de José Zapatero e José Sócrates, especialmente este último, com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva é incontornável. Aqui, a eleição do presidente Lula assinalou o amadurecimento definitivo da democracia brasileira e significou a ¿vitória da esperança sobre o medo¿. Lá, em Portugal, os eleitores foram sensíveis ao mote da campanha socialista: Voltar a acreditar. Pela primeira vez na história dos pleitos legislativos em Portugal, eles concederam a maioria congressual a um partido de esquerda, sepultando as avaliações céticas sobre o futuro daquele país. O próprio José Sócrates resumiu bem o significado de sua eleição ao afirmar que o grande derrotado do pleito fora o pessimismo. Assim, tanto em Portugal quanto no Brasil a esperança e o otimismo derrotaram o medo e o pessimismo.

Porém, as semelhanças entre Lula, José Zapatero e José Sócrates não se restringem ao caráter simbólico de suas vitórias. Acima de tudo, eles devem enfrentar os mesmos desafios comuns aos governos que pretendem enfrentar os problemas sociais, sem renunciar a uma política econômica condizente com os imperativos apresentados pelo processo de globalização. Por isto, esses governos terão de se desdobrar para conciliar competitividade econômica com a busca da coesão social. No caso dos países ibéricos, esses objetivos terão de ser conciliados também por força da chamada Estratégia de Lisboa, que fixou como meta estratégica da União Européia tornar-se espaço econômico mais dinâmico e competitivo do mundo baseado no conhecimento e capaz de garantir um crescimento econômico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social. Por tal motivo, o PS português se impôs como tarefa essencial travar o desvirtuamento neoliberal da Estratégia de Lisboa, voltando a valorizar o modelo social europeu.

No campo da política externa, as excelentes relações Brasil/Portugal e Brasil/Espanha devem aprofundar-se. Esses países estão entre os grandes investidores externos da economia brasileira. Ademais, eles se constituem, por motivos óbvios, na porta de entrada do Mercosul na União Européia. O governo brasileiro tem, pois, interesse em estreitar os laços econômicos e diplomáticos com Espanha e Portugal.

As mudanças políticas ocorridas na Península Ibérica, somadas às que aconteceram no nosso continente, como a de Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, Néstor Kirchner, na Argentina, e Tabaré Vasquez, no Uruguai, propiciam forte sinergia diplomática entre o Mercosul e esses países-chave da União Européia. Devemos aproveitá-la ao máximo, de forma que a jangada da esperança de José Sócrates e José Zapatero, ao contrário da jangada de pedra de José Saramago que navegava sem rumo, venha a atracar, 500 anos após Cabral e Colombo, no porto seguro e solidário das novas águas americanas.

ALOIZIO MERCADANTE é líder do governo no Senado Federal.