Título: EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Autor: Eduardo Campos
Fonte: O Globo, 20/03/2005, Opinião, p. 7

A aprovação pela Câmara dos Deputados da Lei de Biossegurança, e a conseqüente liberação de pesquisas com células-tronco de embriões humanos, representa o primeiro grande passo para o ingresso do país na fronteira da medicina. Passo tão importante, no início do século XXI, quanto foi, nos primórdios do século XX, a descoberta da doença de Chagas, pelo grande brasileiro Carlos Chagas.

Não faltavam, antes, aos cientistas brasileiros, talento e capacidade para avançar nesta área de alta especialização, como demonstram trabalhos de unidades de pesquisa nacionais com células-tronco de medula e de cordão umbilical. Faltava-nos o marco legal, por fim assegurado pela deliberação dos deputados federais, na larga contagem de 366 votos a favor, 59 contra e 3 abstenções.

Com a Lei de Biossegurança, não está sendo autorizada a introdução de nenhuma nova terapia. O que se inaugura no país é uma nova linha de pesquisa, cujos resultados, a serem obtidos a médio e longos prazos, resultariam em novos tratamentos para várias doenças degenerativas ¿ como o mal de Parkinson, diabetes, doenças neuromusculares e até alguns tipos e câncer. Cerca de 5 milhões de brasileiros podem ser beneficiados. Em 24 países, de todos os continentes, experimentos médicos com células-tronco já são autorizados. O Brasil incorpora-se tardiamente a este grupo de elite, em decorrência de um impasse jurídico que se arrastava desde 1995, solucionado em definitivo com a decisão da Câmara dos Deputados.

Agora, o importante é recuperar o tempo perdido. A partir da nova lei pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Ministério da Ciência e Tecnologia estará autorizado a liberar recursos para pesquisas com células embrionárias. Até o momento, há investimentos programados de R$28,3 milhões, abrangendo estudos com células-tronco adultas e embrionárias. Entre elas, um trabalho em parceria com o Ministério da Saúde, para pesquisa da utilização de células-tronco do tecido adulto no tratamento de cardiopatias. Ele envolverá 1.200 voluntários, um recorde mundial, que doarão células derivadas das próprias medulas ósseas, e tem por objetivo confirmar a eficácia e a segurança da técnica, a ser posteriormente adotada pelo Sistema Único de Saúde.

Célula-tronco embrionárias são células pluripotentes, que conservam a capacidade de converterem-se em qualquer um dos 216 tecidos do corpo, de nervos a ossos. Células retiradas de tecidos maduros de adultos e crianças, como a medula óssea, são mais especializadas e, ao contrário das células-tronco embrionárias, dão origem a apenas alguns tecidos do corpo. Pesquisas recentes analisam a capacidade de as células adultas diferenciarem-se com o mesmo potencial das embrionárias. Mas ainda não há resultados conclusivos.

A Lei de Biossegurança só permite o desenvolvimento de pesquisas com células-tronco de embriões excedentes em tratamentos de infertilidade, congelados há mais de três anos, que seriam destruídos de qualquer maneira ou mantidos congelados indefinidamente, doados para fins científicos por seus genitores. As estimativas sobre o número de embriões nessas condições são muito elásticas. Variam de 5 mil a 30 mil. Instituições vinculadas a programas de reprodução assistida estão realizando levantamento em cerca de 150 clínicas do país. Os dados subsidiarão o planejamento das pesquisas.

A exemplo do Brasil, a maior parte dos países que estudam as células-tronco embrionárias utiliza linhagens sobressalentes das clínicas de fertilidade. No entanto, dois deles, a Coréia do Sul e a Inglaterra, já avançaram mais um passo, com a liberação da clonagem terapêutica ¿ a criação de embriões geneticamente idênticos ao paciente para servir-lhe de banco de células. Por meio dessa técnica ¿ a mesma que deu origem à ovelha Dolly, em 1996 ¿ estaria eliminado por completo o problema da rejeição de enxertos de células do embrião clonado para o paciente, uma vez que suas células seriam imediatamente compatíveis. Entre outras possibilidades, a clonagem terapêutica permitiria enxertar na medula espinhal, para repor neurônios perdidos, ou na musculatura, para recompor músculos enfraquecidos pela distrofia.

Mais cedo ou mais tarde, em uma perspectiva de médio ou de longo prazos, o Brasil deverá preparar-se para esse segundo passo, depois do primeiro, a aprovação da Lei de Biossegurança. Ele será dado quando as condições sociais e políticas estiverem amadurecidas, representando mais um marco na afirmação do trabalho dos cientistas brasileiros em favor do progresso do país e de melhores condições de vida para sua população.

EDUARDO CAMPOS é ministro da Ciência e Tecnologia.