Título: FISCAIS PRESOS TINHAM CONTABILIDADE DA PROPINA
Autor: Toni Marques e Chico Otávio
Fonte: O Globo, 20/03/2005, O País, p. 8

Esquema de extorsão de dinheiro de empresas sob fiscalização do INSS incluía até o pagamento parcelado

Os auditores fiscais acusados de desviar R$3 bilhões da Previdência Social criaram um ¿Refis da propina¿ e extorquiam dinheiro de empresas a prestação. A conclusão, que aparece na denúncia do Ministério Público Federal contra 13 auditores ¿ 11 deles já presos ¿ é baseada na contabilidade da quadrilha apreendida na casa de um dos fiscais. O documento mostra que uma das empresas achacadas chegou a parcelar em quatro pagamentos mensais, em 2000, a propina paga aos fiscais.

Refis é uma moratória criada pelo governo federal, em 2000, na qual os contribuintes endividados com INSS ou Receita Federal podem dividir seus débitos em parcelas, com base no faturamento mensal da empresa.

Vinte páginas escritas a mão

A contabilidade da propina dos fiscais do INSS é um conjunto de 20 páginas escritas a mão. É a principal prova colhida pela Polícia Federal e analisada pela força-tarefa que investiga crimes contra a Previdência sobre a existência de um esquema de achaque de empresas e doações diversas consideradas suspeitas, incluindo até supostas despesas com campanhas políticas.

O GLOBO obteve cópia da lista de empresas achacadas e de supostos beneficiários da arrecadação ilícita feita pelos fiscais. A contabilidade manuscrita, com anotações que compreendem o período de 1995 a 2000, foi apreendida na casa de Arnaldo Carvalho da Costa, um dos 11 que foram presos no fim do mês passado (dois continuam foragidos e estão sendo julgados à revelia na 3ª Vara Federal Criminal). Cem empresas foram listadas por Carvalho da Costa, apontado pela denúncia como o provável gerente do grupo, nos papéis apreendidos.

A contabilidade não só cita o nome da empresa achacada e o fiscal responsável como também informa o valor da propina, o prazo de pagamento, o eventual parcelamento e se a quantia foi ou não paga (sob a anotação ¿OK¿).

Na denúncia oferecida à Justiça, o Ministério Público Federal afirma que a ¿estabilidade da quadrilha é tão patente que seus membros não tinham pressa na cobrança das propinas, uma vez que facultava aos empresários o pagamento dos valores indevidos de forma parcelada¿.

Para o Ministério Público, a criatividade do grupo criou um mecanismo de propina parcelada, que seria, segundo a denúncia, ¿uma modalidade especial de regularização de situação fiscal, em moldes semelhantes a Refis ou PAES (Programa de Parcelamento Especial)¿.

Propina era paga um ano depois

A contabilidade revela ainda que os fiscais receberam propina no ano seguinte da visita à empresa extorquida. Nas anotações consultadas, diz a denúncia, constam nomes de empresas com fiscalizações encerradas, com recebimentos pendentes, como por exemplo: ¿Terminei em 97 ¿ A receber em 98¿. Se neste caso a fiscalização estava encerrada, conclui o Ministério Público, ¿como poderia haver pendência de recolhimento?¿, perguntam os procuradores. Ficou evidente, para a Procuradoria da República, que houve negociação de propina. Por se tratar de investigação em aberto, os nomes das empresas estão sob sigilo judicial.

A força-tarefa que investiga o caso, composta pelo INSS e pela Polícia Federal, cruzou os nomes das empresas listadas na contabilidade paralela com os respectivos recolhimentos dessas empresas à Previdência e constatou que o pagamento foi menor do que a ¿expectativa mínima de arrecadação¿ de cada empresa. A força-tarefa investiga se a diferença é justamente a propina cobrada pelos fiscais presos e anotada na contabilidade paralela.

¿Cumpre afiançar que em alguns casos a quadrilha não apurava nenhum débito previdenciário e, em outras ocasiões, lavrava débitos em valores irrisórios¿, afirma a denúncia. ¿Quando (o fiscal) levantava débitos em valores bastante reduzidos, tinha por finalidade conferir uma aparência de licitude à ação fiscal, ou seja, a empresa pagava os débitos e ficava quite com o INSS, mas na verdade havia ocultação de fatos geradores que em muitos casos chegavam a milhões de reais¿.

Fiscais recebiam mesada de firmas

De acordo com as anotações, cada fiscal era responsável por um dado número de empresas. Os valores recebidos estão vinculados a apelido, inicial ou prenome de cada um. Há anotações do tipo ¿a receber¿ e há também ¿vinculação de datas a valores referentes a determinadas empresas, externando o período em que os denunciados receberiam uma mesada dos empresários¿, segundo a denúncia.

Perguntado em juízo sobre a lista, Arnaldo negou que se tratasse da contabilidade de propinas:

¿ Fazia, apenas por curiosidade, o cálculo da produção fiscal de cada uma das empresas feitas por um ou outro colega ¿ declarou.

A contabilidade e outros manuscritos, apreendidos com Arnaldo, evidenciaram a ligação do fiscal com a área política. Em contabilidade escrita em maio do ano passado ¿ ano de eleições municipais ¿ Arnaldo anotou um total de R$9.700 como ¿despesas campanha¿, discriminando datas e valores, mas não beneficiados. Faz uma referência a ¿15 mil camisetas¿ como ¿ajuda de campanha¿.

A Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aparece na contabilidade de 6 de junho de 1998, sob a rubrica ¿receitas fixas ou mais ou menos fixas¿. No item ¿principal¿, Carvalho da Costa escreveu: ¿1,50 + Alerj¿ e mais uma palavra ilegível. Não há na denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal menção a possíveis ligações dos acusados com políticos.

O fiscal auditor, que é compadre e fez pelo menos dois negócios imobiliários com o presidente da Assembléia Legislativa, deputado Jorge Picciani (PMDB), foi requisitado para trabalhar no Departamento de Informática da Alerj, e efetivamente lá esteve entre os meses de novembro e dezembro do ano passado.