Título: UMA SEMANA DE CÃO PARA BRASILEIROS NOS EUA
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 20/03/2005, O País, p. 14

Mineiro confundido com estuprador é levado a julgamento e acaba absolvido; um grupo de 57 é preso e será processado

BOSTON. Num espaço de 48 horas da semana passada o mineiro Junior, de 24 anos, aprendeu mais sobre a condição de imigrante sem documento na América do que em seis meses na Grande Boston, vindo de Resplendor. Foi o bastante para pensar em suicídio, gemer de medo em posição fetal e renascer com fé dobrada em Deus e espanto com um pedaço de vida legal nos Estados Unidos.

A semana começou com Junior sendo interceptado pela polícia de Peabody, umas das áreas de maior concentração de brasileiros da região de Boston. Era madrugada e ele iniciava a jornada de entregador de jornal ao volante do seu Honda entulhado de exemplares do ¿Boston Globe¿ e do ¿New York Times¿. Pediram-lhe a carteira de motorista, mostrou uma habilitação internacional brasileira (falsificada), que ficou retida. Foi admoestado e liberado.

Na madrugada seguinte, foi interceptado por outra patrulha. Mostrou a carteira de habilitação brasileira (legítima), que não vale em território americano, foi novamente admoestado a não mais dirigir sem habilitação do estado de Massachusetts, e liberado. Na madrugada da quarta-feira, já sem dormir, nem teve tempo de dar marcha a ré para começar a ronda. Três patrulhas com luzes e sirenes ligadas cercaram o Honda. Quando Junior saiu do carro, já estava algemado. Os patrulheiros pareciam festejar sua detenção. Estranhou. Como não fala inglês, não entendeu o motivo.

No fórum, a acusação de estupro de menores

Viu o amanhecer chegar numa cela de delegacia, sem sapato, meia ou aquecimento. No início da tarde entendeu, através de um tradutor de espanhol, que seria levado à Corte Distrital de Salem para responder a processo. Estava começando a se resignar à inevitabilidade de ser deportado.

Chegou ao Fórum de Salem acorrentado pelas mãos e pelos pés. Estava de pé, perante o juiz, com um tradutor de português lhe repetindo ao ouvido os termos da acusação. Na galeria, os amigos de Resplendor com quem mora se revezaram para não deixá-lo sozinho. Também não entendem inglês mas conseguiram chegar até a Corte. ¿... estupro da menor xxx, de 12 anos, em Salem, estupro da menor yyyy, de 13 anos, em Newbury, e tentativa de estupro...¿.

Os amigos vêem Junior, olhar desamparado, cair no primeiro de uma série de choros convulsivos. Entra em cena a defensoria pública, na figura do advogado imigrado do Líbano George Abi-Esber. De fala suave mas irremovível, ele veta a acareação da menina de 12 anos com o acusado, proposta pela promotoria. Primeiro e sobretudo, por serem fortes os indícios de se tratar de um caso de homonímia. Segundo, porque a identificação deveria ser feita por uma das várias testemunhas adultas, e não pela vítima jovem ainda fortemente traumatizada.

Contrariado, o juiz adia o processo e Junior é transferido para a Casa de Custódia e Detenção de Middland. É ali que a idéia de suicídio lhe parece lógica e redentora. Como em qualquer prisão do mundo, notícias sobre recém-chegados se espalham como pólvora. E o que aguarda recém-chegados com dois estupros de meninas no prontuário também é de conhecimento universal. Enfiado num macacão laranja-Guantánamo, acorrentado por mãos e pés e portando um bracelete com a identificação numérica do crime de estupro, Junior entendeu todos os olhares trocados por guardas e detentos. Percebeu que um detento americano ao qual estava acorrentado pediu para ser transferido de lugar. Ouviu os urros com que foi acolhido no pavilhão de celas, e intuiu que foi retirado da fila do chuveiro para sua própria proteção.

Chorou. Rezou. Não soube como se suicidar.

¿Este jovem já pagou muito mais do que devia¿, diz juiz

Na manhã seguinte foi levado ao Fórum de Newbury, onde corria um dos processos por estupro. Abi-Esber, que poderia ter passado o caso a um colega local, visto que Newbury estava fora de sua atuação como defensor público, achou que era seu dever acompanhar o brasileirinho até o fim. Estava a postos, montado em provas de que este Junior Gonçalves não era o mesmo Junior Gonçalves que procuravam. Um nascera em 1982, o outro em 1980. Acareado com uma funcionária da lanchonete que conhecia o criminoso, o mineiro de Resplendor foi inocentado. Saiu do Fórum com uma carta do juiz atestando a homonímia. Faltava livrá-lo da acusação registrada em Salem.

Ali, já sem algemas ou correntes mas não libertado do medo, teve o seu caso uma última vez relatado em audiência. O juiz, que não era o mesmo da véspera, a tudo ouviu calado. Só quando o promotor pediu a palavra para dizer que ainda havia pendências envolvendo a sua carteira de motorista é que a cabeça branca do velho magistrado se ergueu. Foi fulminante:

¿ Este jovem já pagou muito mais do que devia.

Assunto encerrado e caso das habilitações irregulares encerrado. Junior estava livre, com uma segunda carta de juiz, esta, manuscrita, ainda mais contundente e definitiva.

¿ Diga a seu cliente para estar sempre com cópia desta carta à mão, pois até prenderem o verdadeiro culpado o nome Junior Gonçalves continuará a estar entre os procurados. E para a proteção dele, aconselhe-o a registrar suas impressões digitais ¿ isso eliminará qualquer dúvida eventual. Mas esclareça-o sobre o seu direito de não ter as impressões digitais colhidas. A decisão deve ser dele.

Abi-Esber se despediu do cliente sem receber um tostão:

¿ Sou pago pelo Estado.

Como defensor público recebe um dos salários mais baixos do funcionalismo.

Em momento algum foi levantada a condição de imigrante ilegal de Junior. Nem pelos policiais que verificam carteiras de habilitação, nem pelo promotor que o acusava de estupro, nem pelo juiz. Nenhuma instância do Judiciário pediu para ver seu passaporte, muito menos saber se tinha ou não visto de entrada para os EUA. Do ponto de vista do Judiciário, ali estava um suspeito de ter cometido um crime. Quem cuida de imigração ilegal é o Departamento de Imigração.

Só ao entrar no carro do amigo que o levaria de volta para a casa é que o dique emocional se rompeu. Junior conta que, ao ouvir a gritaria feroz das outras celas, chegou a pensar ¿Vai ver que estão achando que eu sou o Bin Laden e estão comemorando¿. Sabia que, mesmo nos EUA, era melhor ser Bin Laden do que estuprador. Chora baixinho, encolhido no banco de trás, depois de relembrar cada momento. Ao mesmo tempo, quer e precisa contar para os amigos.

Nestes dois dias, deixou de ganhar cerca de 250 dólares. Os amigos fizeram vaquinha para retirar o carro do depósito. Dormiu um sono agitado e acordou decidido: abre mão do emprego de entregador de jornal até conseguir o impossível, uma carteira de habilitação do Estado de Massachusetts. Mas compareceu ao segundo emprego e mostrou ao patrão americano as cartas dos juízes que explicavam a sua ausência por dois dias.

Junior sabe que dificilmente teria sido interceptado pela polícia se tivesse o carro com todas as luzes funcionando. E que, a menos que cruze com a Imigração, tem direitos ¿ inclusive o de mover um processo contra o Judiciário:

¿ Se eu tivesse sido preso no Brasil por estupro de menor, não seria solto logo, nem falando a língua. Onde é que eu ia arranjar um defensor público assim? Eu ia mofar numa cadeia por muito, muito tempo.

Na noite de sexta, no salão de festas da Paróquia Nossa Senhora de Fátima de Peabody, dezenas de brasileiros sem-documentos se reuniram. O caso de Junior causou calafrios.

¿ Eu também fui preso ontem, carteira de motorista ¿ era a terceira vez. Mas paguei fiança e saí ¿ conta um baixinho de Santa Catarina.

¿ Vocês assistiram ao noticiário de TV (brasileira) ontem? ¿ pergunta sua mulher. ¿ A repórter aconselhava o imigrante a andar de ônibus, metrô ou táxi para não precisar de carta de motorista. Até parece que a gente tem carro por luxo. Quem não tem carro aqui não trabalha, minha filha: como é que vai carregar baldes, aspirador, panos, produtos de limpeza e tudo o mais de uma casa para outra? E as centenas de jornais, vai entregar como até as 6h da manhã em ponto?

Mas foi a notícia da prisão de 57 brasileiros ilegais agenciados pela empresa de limpeza Spectro, na madrugada anterior, que provocou uma inquietação generalizada. Todos serão processados e deportados, derrota absoluta para quem arriscou tanto para chegar até aqui.

Coube a Fausto da Rocha, diretor-presidente do Centro do Imigrante Brasileiro, em Allston, região de Boston, martelar com todas as letras a regra de conduta básica para quem quer viver sem medo e sem documentos: não sair da linha.

Imigrante pagou imposto mesmo na clandestinidade

Fausto viveu 16 anos na clandestinidade e só obteve sua papelada um ano atrás. Mas sempre declarou e pagou Imposto de Renda nos EUA. Visto que as campanhas antiimigração ilegal se alimentam da suposição de que o imigrante suga os recursos sociais do país, o melhor antídoto é estar em ordem com o fisco. Dado que nos EUA Imposto de Renda e Imigração não são vasos comunicantes ¿ em princípio, mesmo na era Bush, as informações de um não são repassadas ao outro ¿ este acaba sendo o passo mais seguro para uma chance de inserção futura.

O atalho escolhido por José Neto, dono da empresa de limpeza Spectro, foi o inverso. Sacou 20 mil dólares de propina para tentar obter o cobiçado greencard para ele e a mulher. Não sabia que era uma armação e estava sendo gravado. Todos os trabalhadores que empregava ilegalmente acabaram presos por tabela: José Neto descontava de suas folhas o pagamento de Imposto de Renda que jamais efetuou. Moral da prelação de Fausto da Rocha: não tente importar para os EUA o jeitinho brasileiro. Não dá certo.

O mineiro Junior não sabe, mas semanas de cão como a sua já emitem ecos do outro lado do Rio Charles, que separa Boston de Cambridge. Na noite de sexta-feira a Universidade de Harvard abriu as portas para a primeira Conferência Nacional sobre Imigração Brasileira nos Estados Unidos. Coisa de fôlego acadêmico e amplo leque de enfoques, com a apresentação de mais de 60 trabalhos e debates que se estenderiam sábado adentro. Organizado ao longo dos últimos três anos pela doutora Clémence Jouët-Pastré, responsável pelo curso de português no programa de Línguas e Literaturas Romanescas de Harvard, a conferência chega em boa hora. Quase a reboque da realidade: boa parte da comida preparada e servida no evento, assim como o preparo das dezenas de salas, limpeza e manutenção dos serviços, terá sido feita por brasileiros ilegais no país.