Título: COMUNIDADE AMEAÇADA: TRAFICANTES USAM VIOLÊNCIA PARA IMPEDIR AÇÕES CONTRA VENDA DE DROGAS E ALICIAMENTO DE MENORES
Autor: Flávio Freire
Fonte: O Globo, 20/03/2005, O País, p. 16

Tráfico mata líderes comunitários em Curitiba

Em três anos, 19 foram assassinados; outros tiveram de mudar de endereço e até de deixar o estado do Paraná

CURITIBA. Traficantes da Região Metropolitana de Curitiba estão matando líderes comunitários que tentam impedir o aliciamento de menores e a venda de drogas em plena luz do dia. Levantamento da Federação de Associações dos Moradores de Curitiba e Região Metropolitana mostra que, somente nos últimos três anos, 19 presidentes de associações de moradores que prestam serviços voluntários em bairros de periferia foram mortos. As mortes já foram denunciadas à polícia. Com as famílias sob constantes ameaças, filhos desses líderes também começam a ser assassinados pelo crime organizado, que estaria proliferando na região.

Diante dos crimes em série contra dirigentes de associações (somente este ano foram quatro mortes), muitos estão mudando de endereço até três vezes por ano ou deixando o estado. Com medo, líderes comunitários estão pedindo destituição do cargo. Muitos bairros perigosos começam a ficar à mercê dos traficantes. Nos últimos dois anos, 15 dirigentes deixaram o serviço voluntário em regiões violentas após ameaças.

¿ Os traficantes ficam ligando para minha casa, dizendo que não sossegam enquanto não matarem minhas duas filhas ¿ diz X., mulher de um militar da reserva que por anos prestou serviço em comunidade carente mas que foi obrigado a deixar o Paraná após seguidas ameaças.

Lei do silêncio já assusta alguns bairros

Em alguns bairros já impera a lei do silêncio. Em Cajuru, uma das áreas mais violentas na periferia de Curitiba e onde se concentra parte das mais de 500 associações da cidade, comerciantes estariam sendo obrigados a pagar pedágio para manter estabelecimentos com portas abertas. Quem resolve denunciar pode ser morto no dia seguinte.

Repórteres do GLOBO percorreram a Rua Trindade, conhecida pela forte influência de traficantes, e tentou informações com comerciantes e moradores, que evitam falar sobre o assunto temendo represálias.

¿ Os traficantes estão mancomunados com a polícia e ficam sabendo das denúncias. Os marginais estão tentando calar a boca de todo mundo ¿ denuncia o presidente da Federação de Associações dos Moradores de Curitiba e Região Metropolitana (Femoclam), João Pereira, que diz sofrer todos os dias ameaças por telefone para abandonar o posto.

Em plena cidade onde o governo federal iniciou a Campanha Nacional de Desarmamento, é comum que líderes comunitários andem armados.

¿ Se os bandidos estão se armando até os dentes não podemos ficar reféns ¿ diz Pereira, que desconversa ao ser perguntado se anda armado ou não.

Na Operação Desarmamento, que antecedeu a iniciativa do governo federal, foram aplicados R$2,9 milhões. Desde o início da campanha do governo federal, 29 mil armas foram entregues no Paraná. O governo investiu aproximadamente R$1 milhão no pagamento da bonificação de R$100 pela entrega de armas à campanha este ano.

O presidente da Femoclam reclama da falta de investimentos em segurança pública, que segundo ele teriam diminuído em todo o estado do Paraná. Números da entidade indicam que, em dois anos, 180 mil habitantes de Tatiquara, o maior bairro de Curitiba, deixaram de ter a proteção de 60 policiais e 12 patrulhas e teriam passado a contar com apenas nove policiais e dois carros. Desde 2003, o governo do estado informou ter adquirido 977 carros para a Secretaria de Segurança Pública, num investimento da ordem de R$32 milhões.

Nos bairros da periferia, dizem líderes comunitários, não é difícil se deparar com adolescentes fumando maconha ou negociando a compra de cocaína e crack à luz do dia. Em janeiro, um garoto de 14 anos foi internado de manhã após sofrer uma overdose. No hospital, descobriu-se que ele comandara um assalto a uma videolocadora um dia antes.

Líderes comunitários fazem trabalho assistencialista

Em bairros carentes de Curitiba, uma boa parte dos líderes comunitários exerce trabalho assistencialista. Organizam bingos e festas para levantar recursos destinados a moradores que precisam comprar material escolar ou mesmo passar por cirurgias. Também buscam vagas em hospitais e em escolas públicas.

¿ Tentamos tirar crianças das ruas porque, do contrário, irão conviver de perto com traficantes. E os piás (crianças) acabam caindo em tentação ¿ diz Antônio Santos, presidente da Associação de Moradores de Tatiquara.

Misturadas a chacinas, as mortes encomendadas caíram na vala comum das estatísticas oficiais. O número de assassinatos de líderes comunitários é contabilizado apenas pela Femoclam, que reúne 1.737 entidades no estado. A Secretaria de Segurança Pública alega que os crimes não foram notificados como "mortes premeditadas".

Advogado diz que governo não dá importância a mortes

Para o advogado da Femoclam, Edson Feltrin, o governo paranaense não tem dado importância às mortes de líderes comunitários.

¿ Se as mortes fossem de grandes figurões, tudo seria diferente. Mas ninguém está preocupado com a morte de pobres que tentam ajudar pobres ¿ diz ele.