Título: `A TARIFA DE ENERGIA VAI CONTINUAR MUITO ALTA¿
Autor: Helena Celestino
Fonte: O Globo, 20/03/2005, Economia, p. 39

Por que o senhor acha que a privatização das companhias de energia no Brasil foi um erro?SUNIL TANKHA: Fiz um trabalho acadêmico, não político. Queria saber como um país com uma indústria de energia eficiente e tecnicamente avançada enfrentou um racionamento, depois de passar pela privatização e por reformas. Passei alguns meses no Brasil ouvindo todo mundo e cheguei à conclusão de que, no início, a privatização foi bem. Em 1995, na época da venda de Escelsa, Light e Cerj, as privatizações foram rápidas mas o país ganhou muito dinheiro nos leilões. O Brasil aproveitou o ambiente econômico mundial que estava favorecendo a privatização. Mas depois houve crises na Ásia e na Rússia, problemas macroeconômicos do Brasil, e tudo isso provocou a paralisação da política de privatização e das reformas. Nesta época, já estava claro que o Brasil precisava de grandes investimentos para evitar um apagão.Por que estes investimentos não foram feitos? TANKHA: O governo dizia que não tinha dinheiro. Mas por que o senhor acha que a segunda fase das privatizações não deveria ter acontecido?TANKHA: Quando a economia mundial muda, tem de mudar a estratégia. Mas o governo tinha uma fixação na privatização como estratégia, não parou para pensar se realmente a privatização estava levando investimentos para o setor elétrico. E não estava. Qualquer organização ¿ empresa pública ou privada ¿ tem que ver a situação do mercado quando desenha uma estratégia. O governo FH, em vez de reconhecer que não era mais possível privatizar como antes, manteve-se enamorado da estratégia da privatização. Achou que adiar o processo seria o fracasso da política inteira. Uma estratégia desenhada em 95 não vale necessariamente em 2005. O governo enfrentou uma situação em que os investidores não estavam mais tão interessados nas empresas. Por causa disso, as taxas de retorno pedidas pelos investidores privados foram altas demais ¿ estou falando de algo entre 15% e 20% ¿ o que pressionou muito as tarifas. Em vez de reconhecer os problemas, o governo naquela época decidiu botar dinheiro do BNDES, dar mais incentivo, fazer acordo de compra de energia, fazer tudo para reduzir o risco para o setor privado. Mas mesmo com todas essas iniciativas, não foi possível atrair muito investimento.Dá para calcular quanto o país perdeu?TANKHA: Sabemos que o racionamento custou ao país cerca de US$10 bilhões. As perdas para as empresas elétricas foram de mais ou menos US$10 bilhões, com a redução de 20% do consumo durante dez meses. Depois do racionamento, o governo contratou energia emergencial, fez contratos de 2002 até 2005 para 54 usinas termoelétricas, a preços muito altos. O investimento feito pelo setor privado nestas usinas foi em torno de R$2 bilhões, mas só entre 2002 e 2004 o governo já pagou a estes investidores R$8 bilhões, muito mais do que o investimento feito. Obviamente, se não houvesse racionamento, o governo poderia ter feito uma negociação melhor por esta energia. São muitas variáveis. Para calcular o prejuízo com a privatização, seria preciso calcular ainda quanto o Brasil perdeu em investimento por conta do racionamento. Quando o processo de privatização começou a parar, em 1997 e 1998, faltou uma estratégia para superar o problema. O governo pegou a estrada errada naquela época e isso causou o racionamento.O senhor tem certeza de que o racionamento foi conseqüência direta dos erros na privatização?TANKHA: Sim, foi uma conseqüência do processo de privatização.A que o senhor atribui esta decisão errada? Foi uma atitude colonizada, no sentido de se alinhar à tendência internacional e não pensar numa solução própria mais adequada ao Brasil?TANKHA: Acho que sim. Uma vez que assumiram a estratégia da privatização, na época recomendada por várias agências multilaterais, não conseguiram avaliar o andamento do processo, não conseguiram mobilizar os profissionais do setor para tentar encontrar uma saída para os problemas. Ficaram presos na sedução da privatização.Qual seria a opção à privatização?TANKHA: Naquela época, de 1996 a 1998, a opção seria o Estado retomar a liderança porque os riscos dos investimentos em energia elétrica eram muito altos para o setor privado. As empresas públicas já estavam saneadas, o governo já tinha assumido a dívida de US$25 bilhões do setor elétrico, causada por políticas erradas ¿ entre outras, o controle das tarifas para evitar inflação ¿ e podiam investir. Em vez disso, o governo tentou ajudar o setor privado com empréstimos subsidiados do BNDES. Ou seja, com recursos do Estado, os mesmos recursos que o governo dizia que não tinha mais. Realmente não foi uma análise correta da situação, o Estado poderia conseguir investimentos. Seria melhor se fosse investimento privado, mas como os recursos não estavam chegando no tempo certo, cabia ao Estado retomar a liderança para evitar o racionamento.As conseqüências dos erros da privatização ainda se refletem hoje?TANKHA: Sim porque, depois do racionamento, o governo fez muitos contratos com investidores privados para incentivar o aumento da oferta de energia e todos esses contratos tiveram preços muito altos. Isso fez aumentar a tarifa média de energia elétrica, o que ainda vai durar alguns anos. Provavelmente, nos próximos três a quatro anos, a tarifa de energia elétrica no Brasil será muito elevada. Muitos dos que compraram as empresas de energia estão em má situação ou deram calote. É má administração ou isso está relacionado à fórmula da privatização?TANKHA: Alguns investidores privados, não todos, erraram na estratégia. Por exemplo, Light e Eletropaulo foram compradas pela EDF associada a uma empresa americana. Endividaram-se muito em moeda estrangeira e não fizeram hedge (proteção). Acharam mais barato se endividar. Quem ficou exposto foi o BNDES, que foi forçado a aumentar a participação acionária nas empresas, o que significou algum tipo de reestatização. Quase todas as perdas do BNDES com essas empresas também significaram perdas para o povo brasileiro.O senhor constatou também corrupção no processo de privatização?TANKHA: Eu pessoalmente não vi, porque seria algo para investigar junto à polícia. Mas vi casos divulgados na imprensa, como o da Eletrosul, em que a única empresa que entrou no leilão foi a Tractebel. Depois descobriu-se que a empresa tinha feito um acordo com a Enron para ser a única, o que é claramente ilegal. Mas não tenho qualquer prova.Como o senhor vê o panorama agora?TANKHA: Para os próximos anos, com as chuvas favoráveis e as concessões feitas depois do racionamento, o Brasil tem espaço para pensar como vai ser a estratégia para desenvolver este setor nos próximos dez a 15 anos. O Brasil tem três ou quatro anos para botar um novo modelo em funcionamento, o que é um espaço curto para planejar tudo. Dependendo do modelo escolhido, as tarifas vão ser mais altas ou mais baixas. Se for completamente privado, vão refletir o custo do capital do setor privado, que será conseqüência do risco para investir no Brasil e em energia. Seria preciso reduzir os riscos e fazer um mix entre investimento público e privado, já que 80% da geração de energia ainda estão nas mãos do Estado.O que acha do modelo da Parceria Público-Privada?TANKHA: Acho que é só uma idéia para não dizer que o Estado está retomando a liderança nos investimentos, porque ainda existe a idéia de que se o Brasil faz um Estado empreendedor de novo vai perder confiança no mercado internacional. Não acredito muito em PPP. Se fizerem reformas organizacionais em Furnas, Chesf e outras empresas públicas, vai dar certo.