Título: DOIS LADOS, PROPÓSITOS IGUAIS
Autor: Ali Kamel
Fonte: O Globo, 22/03/2005, Opinião, p. 7

A pesquisa da UnB sobre a presença de brancos, pardos e pretos nas universidades federais foi motivo de muita discussão. Pena que o MEC, contrariado com os resultados, tenha cancelado a sua divulgação oficial. De todo modo, a imprensa cumpriu o seu objetivo e publicou o seu conteúdo. Em linhas gerais, os brancos são 59,4% dos estudantes das federais, os pretos, 5,9% e os pardos, 28,3%. Na população, os brancos são 52,1%, os pretos 5,9% e os pardos 41,4%. São números próximos mas não totalmente coincidentes. Não importa, a lição que fica é que cotas são um remédio excessivo, que pode trazer ao país o que não conhecemos, o ódio racial. Diante desses novos números, não vale o risco.

A pesquisa da UnB em nada desmente o que qualquer um de nós vê ao entrar nas federais: uma maioria esmagadora de pessoas de pele mais clara, já que praticamente 60% dos alunos se declararam brancos. Mas se vêem também pessoas mais morenas, outras bem morenas e uma pequena minoria de pretos, 5,9% segundo a pesquisa. Quem vê só brancos tem de pensar no porquê. Não conheço quem só veja negros, nem mesmo a pesquisa diz isso. Também ninguém afirmou que todos os problemas acabaram: muito provavelmente a presença de pretos e pardos é maior nos cursos menos disputados (a pesquisa não fez esse detalhamento). Isso decorre, com certeza, da pobreza: por serem pobres, os pretos e os pardos cursaram piores escolas e, portanto, não conseguiram entrar para as carreiras em que a disputa é mais acirrada. A pesquisa do Inep que o MEC divulgou para contraditar a pesquisa da UnB só corrobora essa tese. Ao incluir as universidades privadas, certamente pouco freqüentadas por pobres porque são pagas, a quantidade de brancos aumenta e a de pretos e pardos diminui: 72,9% são brancos.

Seja como for, não vale dizer que a pesquisa é ruim porque contraria o visível e o senso comum. Porque a função de uma pesquisa, a função da ciência, é justamente revelar o que está por trás do visível e contrariar as crenças e os preconceitos mais arraigados. O senso comum, sabemos todos, é pouco sábio. Não fosse assim, até hoje estaríamos convencidos de que o Sol gira em torno da Terra, pois é dessa maneira que o percebemos diariamente. Houve também quem dissesse que há estatísticas boas e más, quando na verdade os números são sempre frios e objetivos.

As interpretações que se fazem deles é que podem ser corretas ou incorretas. Eu nunca discordei dos números de pesquisas de entidades sérias, não ousaria também entrar em luta com os números do IBGE, por exemplo. Mas tenho discordado muitas vezes das análises feitas a partir deles. É assim que um país se move: a partir do debate de idéias, do confronto de idéias. Ninguém é dono da verdade, ninguém tem o segredo da vida, ninguém tem o monopólio da virtude. Eu vejo sempre sinceridade naqueles que discordam de mim. Mas há quem veja sinceridade apenas em seus pares. A pesquisa da UnB foi feita segundo os mais altos padrões técnicos, como todos os que a leram podem constatar. Podem-se interpretar os números de muitas maneiras, mas não se deve desqualificar a pesquisa e os pesquisadores apenas porque os resultados surpreenderam alguns.

O debate em torno de raças no Brasil sempre foi intenso. Deixando de lado todo o debate entre escravocratas e abolicionistas, o século XX foi todo ele permeado por essa discussão. Nas primeiras décadas do século passado, o pensamento majoritário nas ciências sociais era racista. Mas até ele reconhecia que o Brasil era fruto da miscigenação. O racismo era decorrente justamente dessa constatação: para que o país progredisse, era preciso, diziam os sociólogos, que o país se embranquecesse, diminuindo a porção negra de nosso povo. Foi Gilberto Freyre quem se contrapôs a um pensamento tão abjeto como este. Jamais defendeu a tese de que o Brasil era uma democracia racial: ¿Casa grande e senzala¿ dedica páginas e mais páginas ao relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. No debate com o pensamento majoritário de então, o que Freyre fez foi resgatar a importância do negro para a construção de nossa identidade nacional, para a construção da nossa cultura, do nosso jeito de pensar e agir.

Ele enalteceu a figura do negro, dando a ela sua real dimensão. A nossa miscigenação, concluímos depois de ler Freyre, não é a nossa chaga, mas a nossa principal virtude. É somente a partir da década de cinqüenta que uma certa sociologia vai abandonando esse tipo de raciocínio para começar a dividir o Brasil entre brancos e não-brancos, um pulo para chegar aos que hoje dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que negro é todo aquele que não é branco. Adeus morenos, cafusos, mamelucos, caboclos. Eu fico até hoje desconfortável de usar a nomenclatura ¿pretos e pardos¿, mas me rendo a ela porque todas as estatísticas se referem hoje a negros como sendo a soma dos dois grupos, desconsiderando o fato de que ¿pardo¿ abarca todo um dégradé de cores diferentes.

Como se vê, o debate sempre existiu e não somente nas ciências sociais. Uma pesquisa superficial em nossos jornais, nos últimos trinta anos, mostrará que o tema jamais saiu de pauta. Hoje, nós que discutimos o assunto devemos ter a consciência de que não inauguramos nada, não inventamos nada. Somos parte de uma longa engrenagem, com a especificidade de que, hoje, todos lutam para que todos tenham igualdade de oportunidades. É um avanço. Uns acreditam que chegarão a isso com cotas e com políticas de discriminação racial positiva. Outros, como eu, acreditam que usar a lógica do racismo ¿ ¿os homens são diferentes segundo a raça¿ ¿ para combatê-lo é contraproducente e só pode agravá-lo. Nós acreditamos que a desigualdade entre negros e brancos é fruto essencialmente da pobreza. Combatê-la de maneira obsessiva e dar a pobres de todas as cores uma educação de qualidade é a única forma de dar chances iguais a todos. Porque, no Brasil, não há barreiras legais contra etnias ou grupos. E porque, mesmo o racismo existindo aqui como em todo lugar, o traço dominante de nosso povo é a convivência pacífica, intensa e harmoniosa entre pessoas de todas as cores. Nossa miscigenação é a maior prova disso. Abrir mão desse capital seria um desastre.

ALI KAMEL é jornalista.