Título: OS ESCRAVOS MODERNOS DA ÁFRICA
Autor: Fernando Duarte
Fonte: O Globo, 27/03/2005, O Mundo, p. 34

Apesar de países negarem, pessoas ainda são propriedade privada na região do Saara

Está em qualquer livro de história que a abolição da escravidão só chegou à África mais de um século depois da proibição do tráfico negreiro, em 1850. No entanto, na região que compreende o Deserto do Saara, em que estão algumas das nações mais pobres do continente e do mundo, a liberdade existe apenas no papel. De acordo com estudos das Nações Unidas e investigações de ONGs como a Anti-Slavery International, com sede na capital britânica, a escravidão é prática comum em países como Níger e Mauritânia, não somente devido à exploração indiscriminada da força de trabalho, também comum a outras regiões do planeta, incluindo o Brasil. Mas principalmente por um sistema histórico de dominação com características feudais, em que a vida humana é, literalmente, propriedade privada.

Pessoas dadas como presentes

Longe de ser recente, tal situação veio novamente à tona no início do mês, depois de o governo do Níger voltar atrás no que seria um senhor gesto público de combate à tão gritante violação dos direitos humanos: uma cerimônia em que um chefe libertaria em público sete mil escravos, marcada para o último dia 5, foi cancelada a mando do presidente Mamadou Tandja, receoso de que o evento chamasse ainda mais atenção para a questão no país, ainda mais num ano em que a capital, Niamey, será a sede de um encontro da Ecowas, a comunidade econômica que reúne 15 países da África Ocidental. O governo nigeriano fez questão ainda de afirmar que a escravidão não existe no país.

Existe, embora as estimativas variem de 43 mil a um milhão de pessoas. E o mais triste é que nem a realização da cerimônia de março teria mudado significativamente a vida dos famosos sete mil. Uma das principais características da escravidão na região é a hereditariedade. Quem ganha a liberdade não se livra das amarras da discriminação e não raramente continua atrelado ao ex-dono, dessa vez em regime de servidão ¿ por direito, parte dos salários e mesmo da produção agrícola pode receber um tipo de desconto. Não é preciso dizer que os maus-tratos vão de surras à má-alimentação.

Para esses escravos modernos, não há autoridade mesmo sobre a família: crianças são separadas dos pais com até 2 anos de idade, antes mesmo de entenderem o mundo diante de seus olhos.

Escravos também são presentes de aniversário ou casamento para os poderosos. No Níger, sua casta é identificada com um tornozeleira dourada. Há ainda meras relações de escambo, em que um escravo é trocado por pacotes de açúcar. No Chade, outro país da região, crianças são trocadas por vacas ou mesmo alugadas por seus pais. Um estudo publicado recentemente pela ONU revela que famílias não hesitam em entregar crianças ou adolescentes em troca do equivalente a US$8 mensais, um bom dinheiro para um país em que a renda per capita mensal é de apenas US$21.

No Sudão, devastado por uma guerra civil, árabes seqüestram negros, sobretudo mulheres e crianças. A Mauritânia sequer admite a existência do regime em suas fronteiras ainda que estimativas de ONGs calculem que o número de escravos ou descendentes no país equivaleria a 40% de seus 2,9 milhões de habitantes, números que não podem ser devidamente checados, pois o país baniu uma série de entidades. Segundo a Anti-Slavery International, chegou ao cúmulo de promover desmentidos de escravos que ousaram fugir e denunciar maus-tratos, com direito à transmissão de TV e acusações de conspiração comandada pelos ¿poderes coloniais¿.

Leis existem meramente no papel ¿ em alguns países da região a prática sequer tinha punição prevista até recentemente.

Omissão fortalece poder tribal

Mesmo uma atitude mais dura dos governos poderia não ser suficiente. No Níger, alvo de um extenso relatório preparado no ano passado pela Anti-Slavery, a escravidão se concentra em áreas remotas onde a omissão do poder público fortalece a autoridade tribal, cujo apoio é fundamental para as pretensões eleitorais dos políticos. A falta de maior pressão da comunidade internacional, principalmente da França, outrora colonizadora da região saariana, também não ajuda. Por medo, ou por não ter a quem apelar, a massa explorada pode apenas tentar sobreviver um dia de cada vez. Ou torcer para que ao menos seus filhos e netos vejam dias melhores.