Título: PT ENTRE A HISTÓRIA E O `MERCADO¿
Autor: Alberto Goldman
Fonte: O Globo, 29/03/2005, Opinião, p. 7

A democracia é um sistema essencialmente conservador; não dá grandes saltos, não faz revolução. Funda-se na vontade da maioria, quase sempre silenciosa e em grande parte desinteressada, que tem medo e rejeita mudanças revolucionárias. Aceita, sim, reformas moderadas, avanços progressivos e vagarosos no campo social.

Por essa razão, o poder, no regime democrático, costuma ser exercido por partidos políticos conservadores, ditos centristas, que cedem a pressões da esquerda e, gradualmente, tomam iniciativas progressistas, de conteúdo social, segundo o princípio de fazer a ¿revolução¿ antes que o povo a faça. Mas há momentos históricos em que a necessidade dos avanços sociais é tão grande que, por vontade da maioria, partidos de esquerda ganham a eleição e assumem o poder. Cria-se assim um dilema de solução difícil para o partido que, historicamente oposicionista, reclamava transformações situadas muito além da fronteira dos avanços moderados, não revolucionários, que a sociedade deseja.

Este é o problema que o PT vive, sob a liderança extraordinária do presidente Lula. Pessoalmente, acho que a equipe econômica está demasiado conservadora, com medo infundado de reações desestabilizadoras do mercado. Mas há experiências históricas que ilustram bem a dificuldade vivida pelo PT.

A problemática de partido de esquerda no poder surgiu no primeiro quartel do século XX com as primeiras tentativas social-democratas na Europa: governos MacDonald na Inglaterra, Friedrich Ebert na Alemanha, Front Populaire na França, todos fracassados sem conseguir romper o dilema referido. Há exemplos de sucessos dos partidos social-democratas europeus na segunda metade do século. Mas a situação era peculiar àquela época: diante dos êxitos da revolução soviética e do crescimento dos partidos comunistas, que ameaçavam as democracias ocidentais, as maiorias conservadoras cederam mais do que estavam dispostas e se conseguiram avanços sociais substanciais e duradouros. A derrocada soviética e a hegemonia estadunidense absoluta puseram fim àquelas experiências semi-socialistas; os mesmos partidos social-democratas viraram liberais.

Na América do Sul, Salvador Allende e João Goulart constituíram casos ilustrativos de tentativas de avanços maiores que tiveram desfechos infelizes.

A América do Sul parece hoje em um desses momentos de exigência mais aguda de avanços sociais, pedindo viradas à esquerda. Há quatro governos de esquerda e centro-esquerda (Venezuela, Brasil, Uruguai e Argentina) e quatro outros com estado de conflagração política (Colômbia, Equador, Peru e Bolívia). As dificuldades para esses países são ainda maiores porque encontram a oposição de interesses locais economicamente fortes e também dos interesses internacionais no continente ¿ especialmente os norte-americanos, governados por um dos presidentes mais conservadores, direitistas de sua história.

O governo Lula busca desde o início equilibrar-se entre as pressões da base a favor dos compromissos históricos de avanço e as amarras do ¿mercado¿, que ameaça com fuga de capitais e desestabilização monetária e cambial. No primeiro ano, apesar das perdas entre seus parlamentares, não foi tão difícil defender a posição cautelosa. Teria sido bem mais difícil em 2004 sem o crescimento da economia. Agora, crescem expectativas de flexibilização na política restritiva e avultação nos investimentos públicos; e crescem principalmente as exigências da área social, na medida em que se aproxima o fim do mandato Lula.

O PT vive o mesmo dilema do governo, e sofre perdas e reveses decorrentes dessa dificuldade. Dificuldade específica, de partido de esquerda no poder; dificuldade genérica, de partido que não havia ainda exercido o poder federal; e dificuldade muito especial de partido que pratica a democracia interna e convive com uma divisão institucionalizada, que aceita a existência de verdadeiros partidos dentro do partido. Com tudo isso, vai mostrando energia e lucidez para enfrentar seus problemas.

SATURNINO BRAGA é senador (PT-RJ).