Título: CRISE SILENCIOSA NA SANTA SÉ
Autor: Gina de Azevedo Marques
Fonte: O Globo, 31/03/2005, O Mundo, p. 45

Papa se alimenta por sonda e decadência de sua saúde abre crise interna na Igreja

Cinco semanas depois de fazer uma traqueostomia e receber uma cânula na garganta para ajudá-lo a respirar, o Papa João Paulo II sofreu ontem mais um revés na sua debilitada saúde: o Vaticano anunciou que ele, sem conseguir engolir, agora se alimenta por meio de um tubo inserido pelo nariz. A notícia arrefeceu a esperança de quem o viu aparecer na janela do Palácio Apostólico do Vaticano para saudar a multidão na Praça de São Pedro e ainda tinha expectativa de uma recuperação.

Por trás das janelas do Vaticano, porém, especialistas detectam outro drama ocorrendo na forma de uma silenciosa crise entre membros do clero que fazem parte do círculo íntimo de João Paulo II, com a saúde debilitada demais para tomar parte na rotina de condução da Igreja Católica. Segundo vaticanistas, três personagens principais estão envolvidos: o arcebispo polonês Stanislaw Dziwisz, secretário particular do Papa; o cardeal alemão Joseph Ratzinger, prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé; e o secretário de Estado, Angelo Sodano.

O anúncio de que o Papa está se alimentando por uma sonda nasogástrica foi feito pelo porta-voz do Vaticano, Joaquín Navarro-Valls, no primeiro boletim médico desde o dia 10 de março. Segundo a Santa Sé, o tubo ajudará a ¿melhorar sua ingestão calórica e promover uma recuperação eficiente de suas forças¿. E o boletim insistiu que ¿o Santo Padre continua a lenta e progressiva convalescença¿.

Secretário controla acesso ao Pontífice

Um pouco antes do anúncio, João Paulo II falhara pela segunda vez em quatro dias em falar em público. O microfone posto diante dele numa janela do Palácio Apostólico foi rapidamente retirado quando nada mais que sons incompreensíveis saíram de sua boca. Desde o dia 13, quando recebeu alta do hospital, ele não fala em público. O Pontífice apareceu na janela por volta das 11h (hora local) e permaneceu à vista por quatro minutos. Ele benzeu a multidão e ouviu enquanto padres liam sua mensagem aos fiéis em várias línguas.

¿ Foi muito emocionante ¿ contou Luigi Marcucci, de 23 anos. ¿ Mas também é um convite a todos que têm pequenos problemas para seguirem adiante. Este homem realmente acredita no que está fazendo e não vai desistir só porque está fraco.

O silêncio de João Paulo II está gerando preocupação não só entre os fiéis. Os vaticanistas italianos vêm mencionando uma crise interna de poder dentro da Igreja. Segundo eles, a excessiva vigilância do secretário do Papa, monsenhor Stanislaw Dziwisz, impede o contato do Pontífice com importantes cardeais e acaba provocando um descontentamento entre eles. Os jornalistas acreditam que apesar da sua fragilidade física, João Paulo II poderia nomear novos cardeais em vista de um eventual próximo conclave.

De acordo com os vaticanistas, os cardeais dificilmente conseguem encontrar João Paulo II e conversar com ele: tudo passa por Dziwisz.

¿ Se o cardeal Angelo Sodano, secretario de Estado e coordenador supremo da política do Vaticano, consegue passar uma hora com o Papa, Dziwisz passa 24 e controla tudo ¿ comentou Marco Politi, vaticanista do jornal ¿La Repubblica¿.

Ele citou um bispo como fonte de uma informação de que o Papa não está conseguindo governar:

¿ Um monsenhor me disse que João Paulo II não é praticamente capaz de exercer as três funções soberanas do Papa, como nomear os bispos, ter encontros com autoridades eclesiásticas e politicas e realizar elaboração doutrinal ¿ disse.

A crise foi exposta com o texto de meditação da Via-Crúcis do cardeal Joseph Ratzinger, um dos homens mais influentes do Vaticano. ¿Quanta sujeira e soberba dentro da Igreja¿, desabafou o cardeal, completando: ¿A Igreja parece um barco furado em que entra água por todas as partes.¿ Segundo os vaticanistas, as palavras de Ratzinger provocaram um mal-estar e foram interpretadas como uma severa advertência para aqueles que querem reformar as regras da Santa Sé.

Possibilidade de um novo consistório

Os vaticanistas italianos levantaram também a hipótese de um próximo consistório para nomear cerca de 20 cardeais. A lista com os nomes estaria pronta há cerca de um mês. Segundo eles, Stanislaw Dziwisz seria nomeado cardeal como um reconhecimento ao fiel serviço a João Paulo II. Entre os novos cardeais estaria também o brasileiro João Braz de Aviz, arcebispo de Brasília, conforme citou o vaticanista Orazio Petrosillo do jornal ¿Il Messaggero¿. No entanto, a saúde de João Paulo II está piorando e alguns começam a duvidar de um consistório em breve.

¿ Ninguém sabe nada sobre como o Papa poderá tomar novas decisões, nem mesmo sobre o consistório, a não ser que pensem em nomeações de testamento ou para o bem futuro da Igreja ¿ disse ao GLOBO o vaticanista Orazio Petrosillo. ¿ Para um consistório é necessário avisar os futuros cardeais com um mês de antecedência. O Papa não precisaria celebrar pessoalmente a cerimônia, mas sua vontade seria proclamada em público. Considerando-se as condições físicas de João Paulo II, no período entre a divulgação dos nomes e a cerimônia, poderia ocorrer um imprevisto.