Título: CIENTISTA BRASILEIRA DEFENDE ABORTO DE FETOS DOENTES
Autor: Ana Lucia Azevedo
Fonte: O Globo, 01/04/2005, Ciência e Vida, p. 34

Mayana Zatz diz que cabe aos pais decidir se desejam ter filhos com doenças genéticas letais e incuráveis

Um em cada cinco bebês brasileiros que morre antes de completar seu primeiro aniversário tem alguma doença genética. É com esse alerta que a geneticista Mayana Zatz começa um artigo publicado hoje na série Vozes Globais da Ciência da revista americana ¿Science¿, uma das mais importantes do mundo.

Respeitada no meio acadêmico há anos por suas pesquisas sobre doenças genéticas, mais especificamente distrofias musculares, Mayana ficou nacionalmente conhecida ao se tornar uma das lideranças mais ativas da campanha pela liberação do uso de embriões humanos em pesquisas com células-tronco na recém-aprovada Lei de Biossegurança.

Mas as células-tronco são apenas parte da luta de Mayana, que é diretora do Centro de Pesquisa do Genoma Humano da Universidade de São Paulo. Sua batalha maior é melhorar as condições de vida dos portadores de doenças genéticas, cerca de cinco milhões de brasileiros que vivem um drama ignorado pela maior parte do país.

Mais do que isso, Mayana acredita que chegou o momento de o Brasil enfrentar também a discussão do aborto por motivos médicos de fetos com doenças extremamente graves e incuráveis. Hoje, testes genéticos já identificam os fetos doentes, mas a lei proíbe o aborto. Na entrevista abaixo, ela fala do drama de mães e pacientes, do direito ao aborto e das promessas da ciência.

CIDADANIA: ¿Uma grande lição da campanha pela liberação das pesquisas com células embrionárias foi mostrar a importância de ser cidadão. Eu fiquei feliz com o engajamento dos pacientes de doenças que podem ser beneficiados pelas pesquisas. O brasileiro precisa aprender a lutar, tomar o gosto de brigar por seus direitos. Está na hora de se mobilizar mais.¿

RELIGIÃO: ¿Todo mundo tem o direito de professar uma religião. Mas uma crença não pode impedir o direito de todos. A lei brasileira é muito clara. Para que os embriões sejam usados, o casal que os gerou precisa dar autorização. Se ele for religioso, pode simplesmente dizer não.¿

PROMESSAS: ¿Não há dúvida que as células-tronco embrionárias são promissoras. Mas, por enquanto, são pesquisa básica. Lutamos pelo direito de pesquisar, de abrir um caminho. O Brasil está muito atrasado no estudo das células embrionárias. Precisa correr muito se não quiser ficar para trás. O atraso nos custará caro. Mas eu tenho muita esperança de que chegaremos lá. Fazer pesquisa é como construir uma casa, quanto mais gente houver colocando tijolos, mais depressa ela ficará pronta. O que eu quero é poder dizer aos pacientes que quando houver um tratamento nos países ricos, nós teremos a garantia de oferecer para eles também.¿

MITOS: ¿Houve gente falando que queremos trabalhar com células de embrião porque é mais fácil. Isso não é verdade. Células de adulto são muito fáceis de estudar. O que me motivou a entrar nessa linha de pesquisa foi o fato de Ian Wilmut (criador do primeiro mamífero clonado do mundo, a ovelha Dolly), a pessoa que mais entende de célula-tronco no mundo, resolver usar células de embriões por ver nelas a única fonte real de esperança. Se as células maduras fossem essa maravilha toda, já saberíamos, pois elas estão em nosso corpo. Também estamos trabalhando com células-tronco de cordão umbilical e temos dúvidas quanto ao seu valor terapêutico para as doenças que estudamos, as distrofias musculares.¿

UM LONGO CAMINHO: ¿O meu grupo está interessado em desenvolver tratamentos para doenças musculares. O primeiro passo é aprender como fazer as células-tronco de embriões se diferenciarem em células musculares. Só depois de dominar esse processo é que poderemos pensar em testá-las em seres humanos. E isso só depois de pesquisas com animais. Após ter confiança de que elas funcionam com eles, poderemos imaginar fazer testes com pessoas.¿

OUTRAS FRENTES: ¿A pesquisa das células embrionárias também nos ajudará a manipular melhor as maduras. Também poderemos entender como mutações em nossos genes podem levar a doenças.¿

PICARETAS: ¿Temos o dever de informar a população a ter cuidado com falsas promessas. Ainda não existe tratamento com células-tronco embrionárias. Se prometerem isso, estão mentindo.¿

ABORTO: ¿Há testes de diagnóstico pré-natal capazes de dizer se um feto é portador de distrofias musculares e de muitas outras doenças genéticas. Esses testes vêm até diminuindo o número de abortos porque muitas mulheres com casos da doença na família e que se sabem portadoras de mutação abortavam ao descobrir que estavam grávidas. Com o exame, se souberem que o feto é saudável, levam a gravidez adiante. Mas há muita hipocrisia. Está na hora de falar abertamente sobre o direito de mulheres grávidas de fetos doentes abortarem. É o momento de discutir o aborto por motivos médicos. Defendo o direito ao aborto de fetos com doenças genéticas ou intratáveis, incompatíveis com uma vida independente, desde que esta seja a vontade dos pais. Eles é que têm que decidir!¿

MÃES: ¿A decisão de levar adiante ou interromper uma gestação deve ser em primeiro lugar da mãe porque é ela que enfrentará o sofrimento de criar uma criança doente. Eu vi um número imenso de famílias condenadas à miséria absoluta pelo impacto de manter uma criança doente. Se você pode prevenir esse sofrimento, deve ter o direito de escolher fazer isso.¿

DESESPERO: ¿Eu lembro do caso de uma moça muito religiosa que tinha dois irmãos afetados por distrofias. Ela casou e teve dois filhos doentes e uma filha saudável. Mas engravidou de novo e foi abandonada pelo marido. Estava grávida de um feto doente. Essa moça ficou desesperada. Tentou abortar com remédios, intoxicou severamente o feto. Acabou tentando o suicídio, mas felizmente não morreu. Se ela morresse, quem cuidaria dos filhos dela? Esse caso me mostrou que mesmo pessoas de muita fé religiosa podem mudar de opinião quando enfrentam uma situação realmente desesperadora, como aquela de quem se vê tendo que enfrentar uma doença de tal gravidade.¿

DECISÕES DIFÍCEIS: ¿Acho fundamental que antes de se submeter a um exame desses, a mulher saiba muito bem o que vai fazer.¿