Título: "A MP 232 equivale ao apagão de FH"
Autor: Jorge Bastos Moreno
Fonte: O Globo, 03/04/2005, O País, p. 8

O fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estar lendo agora livros de auto-ajuda pode influenciar numa mudança de governo?DELFIM NETTO: Uma das grandes vantagens do presidente Lula é que durante a sua liderança operária ele nunca conheceu um tal de Karl. E mais uma vantagem: eu tenho a impressão de que ele nunca subiu aquelas escadas escuras que levavam sempre a um pequeno quartinho onde se reuniam os comunistas. O socialismo do Lula é um socialismo cristão, nascido em São Bernardo, por indicação do cardeal Hummes. São origens tão diversas desses pretensos socialistas, principalmente os intelectuais socialistas, que hoje estão um pouco frustrados porque acham que o Lula não faz o que eles desejam, não tem nada a ver com eles. O Lula é um produto autóctone de São Bernardo, levou pra São Bernardo e tem aquela cultura de São Bernardo. Trouxe para Brasília a cultura de São Bernardo. Não há nada mais autêntico do que essa Presidência que está aí. Mas ele não pode ser influenciado por essas receitas fáceis de sucesso?DELFIM: O fato de ele ler livro de auto-ajuda não faz nenhum mal. Na verdade, as pessoas precisam de alguma crença, de uma crença muito maior do que a auto-ajuda. Sempre digo que Lula é, de verdade, um católico fervoroso, ou seja, muito mais perigoso do que qualquer comunista.O senhor e outros intelectuais têm preconceito contra os livros de auto-ajuda?DELFIM: Não tenho nenhum, porque não preciso de auto-ajuda, procuro ajudar os outros. Não é uma literatura proibida. Ela atende a alguns interesses pessoais, psicológicos, não há razão para rejeitá-la.Mas o Fernando Henrique deve torcer o nariz ao ver seu sucessor recorrendo a esse tipo de literatura, não?DELFIM: Provavelmente o Lula entende mais de Paulo Coelho do que o Fernando Henrique de Hegel. É muito mais compreensível. Entre um texto de Hegel e um texto de Paulo Coelho, é óbvio que Paulo Coelho é muito mais lido e muito mais compreensível. Não acredito que o Fernando tenha ficado surpreso. E suspeito que ele também, no banheiro, lê o Paulo Coelho.E o ministro José Dirceu?DELFIM: Não acho que o José Dirceu tenha a pretensão de ser visto como intelectual. Zé é um eficiente administrador, treinado de forma que deixa muito a desejar, mas está se aperfeiçoando, tem crescido. Na minha opinião, abandonou completamente a velha crença. Hoje ele é um chefe da Casa Civil tão eficiente como foram os últimos que conhecemos. Não vejo nele nenhuma pretensão intelectual, aliás, não vejo neste governo ninguém com pretensão intelectual, a não ser o ministro da Educação, Tarso Genro. É o único que acho que gosta de fazer formulações intelectuais. O governo Lula, graças a Deus, é intelectualmente modesto.Tanto que o PT está mais para seguir a doutrina do Delúbio Soares (tesoureiro do partido) do que para Tarso Genro.DELFIM: Eu diria que a nenhum dos dois. Espero que o PT se aperfeiçoe um pouco mais rapidamente. Sempre digo que, no tempo suficiente, até o PT aprende. Ele leva um tempo, tem dificuldades, mas aprende. O problema do PT é aquele assembleísmo nato, aquele assembleísmo que reduz a eficiência da administração. O PT chega numa parte que já está asfaltada para decidir quem vai asfaltar a Rua A e a Rua B. Antes de terminar a discussão, eles destruíram a parte que já está asfaltada e não decidiram quem vai asfaltar a Rua A e a Rua B. Tem grandes dificuldades de conduzir o seu processo. Então, acho que existem também alguns mitos, eles acreditam em orçamento participativo, crêem em alguns conceitos que eles mesmos criam e que depois deixam de pôr em prática durante muito tempo.E Severino é um fenômeno ou é um processo?DELFIM: Severino não tem nada de ingênuo, não tem nada de tolo; o Severino não tem nada dessa imagem que se tenta fazer dele. O Severino é, na verdade, um sujeito determinado e com enorme senso de oportunidade. O Severino chegou à presidência da Câmara simplesmente porque o PT foi incapaz. Ele percebeu, instantaneamente, que aquela divisão que existia dentro do PT, que todo mundo imaginava que iria desaparecer antes da eleição, ele percebeu que aquilo poderia permitir um fato inusitado, qual seja, eleger alguém que não fosse ligado ao governo ou ao partido majoritário. E isso foi facilitado pela própria história do PT. O PT contestou sempre a tradição, de forma que acabou pagando o preço pelo fato de não ter compreendido que no Congresso valem duas coisas, ainda que as pessoas tenham dificuldade de compreender: no Congresso vale a tradição e no Congresso vale a palavra. O Congresso sem a tradição não funciona e sem a palavra o Congresso é uma mixórdia. Existem semelhanças entre Severino e Lula? DELFIM: Vejo uma semelhança enorme; vejo dois indivíduos que empurraram a vida por conta própria; vejo, na origem, dois católicos, e, mais importante do que isso, dois indivíduos cujos valores mais importantes são os da família. Essa é uma proximidade muito grande. Por isso é que não tenho dúvida. Sempre digo: em três meses, Dirceu que se cuide, porque Severino vai ser muito mais amigo do Lula do que ele.Mas Severino empacou a reforma ministerial.DELFIM: Tenho uma opinião a respeito. Acho que sobre um erro do Severino o Lula produziu um acerto. Na verdade, Severino foi induzido por um entusiasmo enorme. Quem estava no Paraná viu Severino cercado por mais de 500 pessoas e discursava sobre a MP 232 com um enorme entusiasmo. Então, como se diz: `Abre a boca e deixa o espírito falar¿. Depois quando te contam o que você falou, você se arrepende. E pôs na verdade uma situação que era impossível para o presidente aceitar. Não era admissível a imposição. Vivemos em um regime presidencialista legal, em que os ministros são uma emanação do presidente. Mesmo querendo atender a um partido, como ele precisa atender, tem de dividir o poder, afinal de contas quem ganhou a eleição foi Lula e não o PT. Lula ganhou a eleição com aquela ¿Carta aos brasileiros¿. Assim, é natural que divida o poder. Fernando Henrique Cardoso fazia assim?DELFIM: Com muito mais habilidade. Fernando é um sujeito que sabia como se opera o mundo. Chegava para o partido e dizia: `Estou com uma grande inclinação de indicar um ministro. Se vocês me trouxerem o nome do Marcus Vinícius (Pratini de Moraes), vou achar muito interessante¿. Então, o partido escolheu, mas escolheu depois da mensagem recebida. Ele foi assim com (Francisco) Turra, foi assim com (Francisco) Dornelles, enfim com outros ministros. É da natureza do sistema que se crie uma enorme confiança entre o ministro e o presidente. Essa confiança não pode deixar de existir.O senhor tem sido ouvido muito pelo governo.DELFIM: Não é verdade. Tenho muito pouco e só quando sou honrado com um convite, o que é raro. Minha comunicação com o governo é a de imprensa. Eu me comunico com o governo por meio de três artigos semanais publicados nos jornais. É por aí que me comunico com o governo. E também, de vez em quando, é por aí que eles respondem. Nem com o Palocci?DELFIM: Com o Palocci eu tenho um contato muito amigável, mas eu seria a última pessoa a ir chatear o Palocci semanalmente. Já fui ministro e sei que isso é de uma inconveniência louca. A minha relação... Isso é um mito que se criou, mas que não é verdadeiro. Já disse isso uma vez, mas as pessoas se recusam a acreditar. Não é verdade.E o rompimento com o FMI?DELFIM: Essa não é uma medida correta. É uma medida política. A meu ver, o custo do seguro do FMI era o mais barato de todos, se houver alguma crise ¿ espero que não tenhamos mais. O governo, na minha opinião, aproveitou um instante em que está caminhando em todos os setores para fazer um agrado naquele grupo em que ele tinha perdido prestígio. O presidente fez um discurso muito interessante, dizendo: `Quando eu estava do lado de vocês aí, eu xingava o FMI; agora, quero lhes dizer que, do lado de cá, o FMI me salvou três vezes¿. O FMI é que tornou possível essa passagem elegante do Fernando Henrique para o Lula. A decisão, então, a meu juízo, foi muito mais para agradar. Ela tem um certo populismo no sentido depreciativo do termo. Mas, com que conseqüências? Aparentemente, nenhuma; a não ser que haja uma tempestade pela frente, uma dificuldade maior. Mas, agora, a meu ver, mais do que isso: o Fundo fez uma concessão importante para o Brasil, a de permitir que ele usasse um pedaço do superávit primário para fazer investimentos ¿ esse projeto que está aí rodando. Acho que o Brasil queria alguma a mais e o Fundo disse: `Não, você escolhe ¿ agora entra ou sai¿. Todavia, não tenho a menor dúvida de que, se houver alguma dificuldade, o Brasil reata com o Fundo com a maior tranqüilidade.O governo está politicamente perdido? Primeiro, perde a presidência da Câmara, depois desiste de uma reforma ministerial anunciada há cinco meses e agora orienta contra a MP 232. Esses desacertos não passam a idéia de incompetência política?DELFIM: A medida provisória 232, na minha opinião, é um símbolo de incompetência equivalente ao apagão do Fernando Henrique. É do mesmo nível. A MP 232 tentou ser empurrada goela abaixo, sem uma discussão mais adequada. Não compreenderam que a própria ação do governo está criando o que se chama cidadania. As pessoas acham que o presidente precisa de auto-ajuda, mas ele já ajudou os outros. O cidadão que está aqui fora já foi ajudado por ele, e diz: `Virei cidadão, que negócio é esse de querer tomar a minha grana?¿. Então, essa combinação extraordinária de um mecanismo que, na verdade, era para aumentar o imposto de pessoa jurídica, em alguns casos, reduziu a informalidade no mercado de trabalho. Essa técnica deu ao mercado de trabalho brasileiro a maior flexibilidade do mundo. O cidadão que hoje é empregado por uma empresa como pessoa jurídica não tem décimo-terceiro, não tem férias, não tem cesta básica, não tem saúde, não tem coisa alguma, só tem aquilo que recebe. É como se fosse um americano, só que recebe vinte vezes menos. O que aconteceu? O governo não trabalhou com mais cuidado esse problema, mesmo porque o aumento de imposto era menor do que parece, mas o governo foi incapaz de mostrar isso. Acho que foi uma demonstração de incompetência. Deram uma surra, um pau no governo. E é uma união geral, não têm racionalidade as coisas que estão acontecendo. Também o governo precisa prestar atenção. Essa oposição está ficando cada vez mais eficiente, estamos vendo nascerem, aqui dentro, alguns valores novos que estão conduzindo essa máquina. Se o governo não se reorganizar, se o governo não rearrumar a sua tropa, ele vai ter dificuldades.O Lula, na reeleição, ganha até de um poste, tenha ele o nome que tiver?DELFIM: A minha convicção é a seguinte: Lula é um líder carismático, Lula já ganhou uma eleição. Fernando Henrique não ganhou nenhuma eleição; ele ganhou as que Lula permitiu que ele ganhasse. Com seu prestígio, é muito difícil bater Lula. Lula tem uma dialética, uma retórica, que fala ao trabalhador, ao mais humilde, ao mais pobre. Sempre digo: eu assisti, não era um comício, mas uma comemoração na Caterpillar e vi os trabalhadores chorando. Quer dizer, não adianta imaginar hoje que vai ser eliminado porque passou de 5% para 7%, vai ser eliminado porque agora está precisando de auto-ajuda, vai ser eliminado porque descobrimos aqui uma liderança muito forte, capaz de apresentar um programa alternativo, nada disso. Nenhum ¿ aliás é uma grande tragédia ¿ dos partidos que estão aí tem um programa muito melhor do que este que está sendo posto em prática. Acho que se Lula pensa que está indo bem na área social, é onde eu penso que está indo pior. Toda vez que ele faz um diálogo, que ele inventa uma história, é curiosíssimo o fato de que, quando de repente vêm as estatísticas, ele faz exatamente o contrário. Estava todo mundo morrendo de fome, agora está todo mundo obeso. Então, precisa de um programa contra a obesidade, não contra a pobreza. Há o problema do Tarso Genro, das cotas. Descobriram que as cotas já existiam e eram melhores que as dele.Claro que o senhor, conhecido pela extrema elegância, jamais daria nomes aos bois, mas o presidente Lula tem ministros incompetentes?DELFIM: Eu acho que tem. Mas você tem razão, eu jamais daria nomes, até porque a minha visão é parcial. Eu até vou te dizer uma coisa: se eu fosse ministro da Fazenda, gostaria muito de ter ministros incompetentes me acompanhando.Por quê?DELFIM: Porque eu aí não gastaria.