Título: Tradição milenar na hora da morte do Papa
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Fonte: O Globo, 02/04/2005, Economia, p. 35

Igreja Católica prevê ritual para verificar falecimento de Pontífice, que decidiu ele próprio regras de seu funeral

Para uma das instituições mais antigas do mundo com seus dois mil anos de História, um dos momentos mais solenes da Igreja Católica ocorre no momento da morte do Papa. Progressos da ciência, como os aparelhos que podem constatar a atividade cerebral do líder do rebanho católico, estão à disposição dos pontífices desde o século passado, mas o ritual milenar de verificação da morte de um Santo Padre será repetido com João Paulo II em pleno início do século XXI.

Como manda a tradição, o responsável por declarar oficialmente a morte dos papas é o Camerlengo da Cúria Romana, atualmente o cardeal espanhol Eduardo Martínez Somalo.

Os médicos particulares do Papa são os responsáveis por decidir a hora da morte do Pontífice, mas, para a Igreja, um último ritual ainda tem de ser realizado antes que o Santo Padre possa ser declarado morto e o trono de Pedro considerado vago.

Papa é chamado pelo nome de batismo três vezes

De pé, ao lado da cama do Pontífice, o camerlengo chama o Papa três vezes pelo nome de batismo: no caso de João Paulo II, Karol Józef Wojtyla. O camerlengo, então, tem de bater na testa do Santo Padre com um martelo de prata que contém o brasão papal. Todo o protocolo servia em outros tempos para que se tivesse certeza de que o chefe da Igreja havia realmente falecido.

Se João Paulo II não resistir ao agravamento de seu estado, Somalo terá de dizer a frase que por 263 vezes já abalou o mundo cristão: ¿o Papa está morto¿.

Fotos e vídeos do corpo do Papa são proibidos

Há dúvidas sobre o fato de a cena ainda ser repetida pelos papas do século XX devido a seu anacronismo. O último Papa a oficialmente ter sido declarado morto após o cerimonial toque com o martelo foi Leão XIII, em 1903. Porém, foram tiradas fotos ¿ que depois vazaram para a imprensa ¿ de o camerlengo pousando o martelo na testa de João XXIII já em 1963. De lá para cá, os registros de tal cena não mais existiram, mas talvez isso se deva mais ao maior controle sobre as fotos da morte do Pontífice do que à não realização do milenar ritual.

São proibidos quaisquer registros fotográficos ou em vídeo do corpo do Papa em seu leito de morte. Porém, o camerlengo pode permitir que uma pessoa de absoluta confiança tire fotos de caráter documental, mas somente depois de o líder da Igreja estar trajando as vestes pontificiais.

Os cuidados em relação a fotos aumentaram muito depois que imagens sombrias do cadáver de Pio XII, morto em 1958, foram publicadas por vários jornais italianos. Elas foram tiradas por Riccardo Galleazi-Lisi, um dos médicos do Papa. Depois se descobriu que Galleazi recebeu por anos pagamentos de veículos de imprensa para revelar segredos do papado e fornecer um diário do sofrimento de Pio XII durante sua doença.

Anel do Pescador do Pontífice é destruído

Acompanhado pelos outros três prelados que integram a Câmara Apostólica, chefiada pelo camerlengo, o cardeal Martínez Somalo tem a função de destruir o Anel do Pescador, o símbolo máximo da autoridade papal, depois da morte de um Pontífice. Esta tradição vem desde o século XV, quando o anel era usado para lacrar com cera documentos oficiais do Pontífice. Se o anel caísse em mãos erradas, documentos falsos poderiam ser atribuídos ao Papa, principalmente no período de vacância da Santa Sé.

O Papa, no entanto, será enterrado com seu anel episcopal de ouro, símbolo de seu papel como bispo de Roma.

Martínez Somalo e o restante da Câmera Apostólica assumiram, então, a posse nominal dos bens da Santa Sé, como o Castel Gandolfo, o Castelo Sant¿Angelo e outras propriedades, além dos depósitos financeiros. Durante o interregno entre a morte de um Papa e o término do conclave que elegerá o novo chefe da Igreja, é o camerlengo o responsável pelos bens do Vaticano. Ele, no entanto, tem este poder bastante limitado pelo Colégio dos Cardeais, responsável por qualquer decisão mais importante que tenha de ser tomada.

Martínez Somalo é um dos poucos cardeais ou arcebispos encarregados de departamentos da Cúria Romana que não perdem o posto no momento em que a morte de um Pontífice é declarada. Até mesmo o cardeal Angelo Sodano, que como secretário de Estado é o principal diplomata da Santa Sé, perderia o emprego. Além de Somalo, mantêm o cargo o vigário da diocese de Roma (atualmente o cardeal Camillo Ruini), para continuar a suprir as necessidades pastorais dos romanos, e o cardeal Francis Stanford, cujo função hoje é cuidar dos assuntos confessionais do Vaticano (cargo que não pode ficar vago para que ¿a porta do perdão nunca esteja fechada¿).

Dia do funeral deverá ser decidido por cardeais

O próprio João Paulo II definiu as honras que deveria receber após sua morte. Em 1996, ele ordenou a publicação de uma Constituição Apostólica, a Universi Dominici Gregis, na qual decreta que os cardeais deverão celebrar as exéquias por nove dias. Mantendo a tradição, seu corpo deverá ser levado do Palácio Apostólico para a Basílica de São Pedro, onde poderá ser homenageado pelos fiéis até o dia do enterro.

O dia do funeral deverá ser decidido pelo Colégio de Cardeais e deve ser realizado entre o quarto e o sexto dias depois da morte do Pontífice, a não ser que este tenha deixado um testamento que forneça uma data diferente. O corpo do Papa deverá ser enterrado na cripta que fica sob a Basílica de São Pedro. Os corpos dos papas mais recentes estão nesta cripta, porém João Paulo II ordenou que a tumba de João XXIII (1958-1963), conhecido como o Papa Bom, fosse levado para uma capela da Basílica.

Pergaminho com feitos do Papa será colocado no caixão

Tradicionalmente, o caixão com o qual o Papa é sepultado é feito de madeira de cipreste, que estará dentro de uma caixa de chumbo. Esta, por sua vez, estará dentro de uma caixa feita de madeira de pinheiro. Dentro deles, será colocado um pergaminho no qual são descritos, em latim, os principais feitos do Papa. Três bolsas vermelhas com moedas de ouro, prata e bronze cunhadas durante seu pontificado também repousarão junto a seu corpo.