Título: CHINA ENFRENTA O DRAMA DAS CRIANÇAS DE RUA
Autor: Gilberto Scofield Jr.
Fonte: O Globo, 03/04/2005, O Mundo, p. 46

Menores fogem de maus tratos no campo para pedir esmola a turistas em grandes cidades, como Pequim e Xangai

PEQUIM. O ano é 1999. No filme ¿Nem um a menos¿, do diretor chinês Zhang Yimou, uma professora substituta num vilarejo miserável no interior da China tem como desafio não deixar que as crianças larguem seus estudos para, com o trabalho, ajudar na renda familiar. Apesar disso, uma das crianças é mandada para a cidade grande para fazer bicos e ajudar a mãe, doente e viúva, a pagar uma dívida familiar. A professora viaja até a cidade e, depois de muito esforço, descobre o menino mendigando pelas ruas.

O ano é 2005. Em frente ao mercado das sedas, em Pequim ¿ o terceiro mais freqüente destino dos turistas, depois da Cidade Proibida e das Muralhas da China ¿ crianças sozinhas ou acompanhadas dos pais abordam estrangeiros e pedem dinheiro. A maioria absoluta vem do campo, de onde seus pais migram em busca de melhores oportunidades, de carona no rápido desenvolvimento da China. Ou de onde fogem dos abusos sexuais e morais de que são vítimas pelos próprios parentes. Poucas falam. Os traumas pessoais ou medo de represálias do governo ¿ que pode mandá-las de volta para casa ¿ as tornam desconfiadas e retraídas.

Segundo o governo, país tem 150 mil crianças de rua

Nos últimos dez anos, a China assiste assustada ao crescimento de um fenômeno com o qual as grandes cidades da América Latina já se acostumaram: o das crianças de rua. Segundo Marc Ono, chefe do serviço de proteção e apoio a comunidades do Unicef-China, existem hoje oficialmente no país cerca de 150 mil meninos e meninas de rua. Mas o número é subestimado pelas estatísticas oficiais ¿ o total mais realista está próximo de 500 mil.

¿ A quantidade de crianças de rua na China é no mínimo três vezes maior, pois os sistemas de controle dos imigrantes, que existiam há 20 anos, foram sendo relaxados por conta da necessidade de mão-de-obra barata do campo nos grandes centros. Hoje, uma criança que foge de casa no interior de uma província dificilmente pode ser localizada numa grande metrópole, como Xangai ou Pequim ¿ diz Ono.

O perfil dessas crianças já foi traçado pelo Unicef: são crianças e adolescentes de 10 a 14 anos, pobres e vindas do campo. Ainda que muitas venham da área rural com as famílias e sejam usadas pelos pais para sensibilizar estrangeiros pedindo dinheiro na rua, a maioria está sozinha na grande cidade, fugindo de abusos cometidos pelos parentes.

¿ Abusos sexuais cometidos por parentes, em geral padrastos, são os casos mais freqüentes. Mas sabemos também de meninas rejeitadas por serem mulheres e não poderem ajudar nos trabalhos pesados da fazenda. Ou pais violentos que descarregam nas crianças frustrações. Ou ainda crianças que simplesmente não agüentam a carga de trabalho que lhes impõe a família ¿ conta Ono.

No passado, controle estatal dificultava a migração

Ainda na década de 70, período do rígido controle migratório imposto pelo governo de Pequim, as crianças que conseguiam escapar do inferno familiar eram facilmente localizadas em outros municípios pelo gigantesco aparato de controle do próprio governo ou do Partido Comunista da China. Além disso, os moradores de determinada cidade ou distrito só podiam receber benefícios previdenciários ¿ como pensões, indenizações ou itens da cesta básica ¿ nos lugares onde nasceram, o que desestimulava as mudanças.

Com o início da abertura econômica, nos anos 80, esses controles foram relaxados. Com isso, o inchaço das grandes cidades facilitou o deslocamento de crianças.

¿ Há oito anos, a saída encontrada pelo governo da China para o problema eram os centros de detenção, que mais pareciam presídios, ou o simples envio da criança de volta para os pais. Entendemos na Unicef que o encaminhamento de menores para instituições não resolve e pode até agravar o problema. Procuramos resolver estes conflitos localizando a família da criança e tentando achar soluções para o problema. Ou buscando pais adotivos ¿ diz Ono.

O Unicef, continua Ono, também começou a trabalhar com o governo na criação de centros de proteção à criança. Neles, os menores têm atendimento médico, odontológico, assistência social, além de alimentação e lazer. Hoje, os centros de detenção foram substituídos pelos centros de proteção, que são 127 em toda a China

Governo está construindo centros de ajuda para 10 mil

O assunto, atualmente, recebe atenção especial do governo chinês, que gastou 120 milhões de yuans (US$14,5 milhões) em 2003 na construção de centros para ajudar dez mil crianças. Mas a situação piora a cada ano, segundo Ono, por conta do aumento na diferença de renda entre ricos e pobres por todo o país.

Em um recente seminário sobre crianças de rua em Pequim, Wang Wanmin, diretor do Centro de Proteção à Criança de Zhengzhou, capital da província de Henan, disse que levar a criança de volta para casa era uma das tarefas mais difíceis. Segundo ele, a criação de uma rede de proteção não-familiar foi a solução de sucesso em sua região:

¿ O lar, às vezes, se torna um lugar perigoso para as crianças que sofrem violência ou abusos. Formamos em Zhengzhou as chamadas famílias por adoção para proteger as crianças em comunidades mais prósperas. Em cada família, dois ou três adultos voluntariamente se responsabilizam pela criação de cinco a seis crianças até elas completarem 18 anos. Estamos tendo muito sucesso.