Título: PATUSCADA UFANISTA
Autor: Anthony Garotinho
Fonte: O Globo, 05/04/2005, Opinião, p. 7

Mais do que a simbologia, moldura ou o invólucro, são os atos e as ações da rotina administrativa que determinam o caráter político-ideológico de um governo. Pouco adianta a pirotecnia das comemorações se não for antecedida de diretrizes objetivas que permitam o entendimento pleno de que a percepção inicial resulta de uma inequívoca correspondência com as ações práticas ¿ aquelas que dizem respeito à vida dos cidadãos e são compreendidas por conta de interferências concretas e perceptíveis na sempre árida faina dos brasileiros.

A análise do já famigerado fim do acordo com o FMI conduz-nos a uma reflexão preliminar: seria uma mudança estrutural no conceito de gestão econômica ou apenas um afastamento institucional do órgão internacional, por desnecessário dado que o seu receituário já fora assimilado plenamente pelos atuais gestores de nossa política econômica. Esta assertiva parece-me mais próxima da realidade, pois, a despeito da não renovação do acordo, os fundamentos da política econômica ¿ noutras palavras, os ditames do Fundo Monetário Internacional ¿ permanecem inalterados.

O ministro Antonio Palocci fez reverberar a decisão como se nela houvesse alguma conotação política. O tom ultrapassou os limites técnicos e ganhou nuances que podem ser interpretadas como uma espécie de fim da nefasta tutela internacional. Não houve arroubos mais efusivos; não se repetiu o bordão de ontem, tão afeito ao PT pré-governo, ¿Fora FMI¿. Seria um excesso imperdoável, uma contradição vexatória, pois nenhum outro governo incorporou como dogmas as férreas regras emanadas pelo Fundo. Mas, a bem da verdade, a forma como o fato foi apresentado à nação deixa transparecer a idéia de que a decisão significaria um reencontro do PT com suas esmaecidas bandeiras de outrora. Não foi.

Se o acordo não foi renovado, os termos do entendimento o foram. Os atuais gestores da economia anunciaram também a disposição de promover um aperto fiscal ainda maior, numa demonstração pública de que se prescindem do acompanhamento do professor é porque já sabem a lição de cor e salteado. Os números são eloqüentes e traduzem o fato à perfeição: em 2004, a meta do superávit exigida era de 4,25%. Por deliberação própria, o Planalto resolveu elevá-la a 4,5% e o índice real foi de 4,6%. Resultado: houve brutal compressão dos gastos com os malfadados contingenciamentos.

A análise destes cortes, contudo, traz-nos surpresas e revela o lado perverso do modelo: foram sacrificados exatamente os investimentos estruturantes e, num movimento às avessas, inflados os gastos de pessoal e de custeio. As estradas continuam em frangalhos; a estrutura portuária, deficiente e o modelo de geração de energia, capenga. Ao mesmo tempo, foram contratados 42 mil novos servidores e criados 1.500 cargos em comissão, gerando um aumento de 30% dos gastos de pessoal. Tais medidas têm objetivos indisfarçáveis: aparelhar a máquina estatal e dar abrigo à legião de petistas derrotados nas urnas, mas apaniguados pelo poder.

Discutir a adoção de uma política econômica sem fundamento no arrocho fiscal passou a ser sacrilégio, uma espécie de afronta ao senso comum dominante. Nem tanto. A União Européia estuda neste momento a flexibilização de suas regras para que, em épocas de vacas magras, o déficit fiscal possa ultrapassar o teto de 3% do PIB. No mínimo, o debate é pertinente e dele poderá resultar um modelo igualmente responsável do ponto de vista fiscal, mas um tanto vertebrado de modo a compatibilizar controle da inflação, crescimento econômico e distribuição de renda.

Um mergulho nas contas do governo federal permite-nos uma outra constatação, igualmente desoladora: todo o esforço fiscal se perde num passe de mágica com a adoção de taxas de juros escorchantes. Vejamos: nos últimos 12 meses, o superávit primário foi de 4,8% ou R$86,28 bilhões. No mesmo período, os gastos com juros somam R$131 bilhões, 7,29% do PIB. Em resumo, um sacrifício cavalar totalmente neutralizado pelos juros que, na contramão do bom senso, só fazem aumentar os lucros da banca.

O fim da tutela do FMI deve ser comemorado, sem se perder a perspectiva de que as mudanças necessárias ao país ainda estão por fazer. Mais do que patuscadas ufanistas, o Brasil necessita de uma política econômica que privilegie as forças produtivas com a redução dos juros e valorize o cidadão, com distribuição de renda mais equânime e solidária.

ANTHONY GAROTINHO é secretário estadual de governo e coordenação e foi governador do Estado do Rio.