Título: TERRI E O PAPA
Autor: Ali Kamel
Fonte: O Globo, 05/04/2005, Opinião, p. 7

No mesmo dia em que Terri Schiavo morria, na quinta-feira, 31 de março, o mundo tomava conhecimento de que o Papa entrara em sua agonia final. Os pais de Terri, católicos e com o apoio da Igreja e do mundo cristão, chegavam ao fim da luta de anos para que o genro não tivesse autorização para fechar o tubo de alimentação que a mantinha viva. Líder máximo da Igreja Católica, no mesmo momento o Papa anunciava aos cardeais a decisão de não ir para o Hospital Gemelli: consciente de que estava moribundo, recebeu a unção dos enfermos e decidiu que teria uma morte digna em sua residência, sem aparelhos, sem tentativas desesperadas de salvação. Muitos viram nessas duas situações um paradoxo. A mesma igreja que condenava a ação do marido de Terri aceitava com resignação e naturalidade a decisão do Papa. Mas não há paradoxo algum.

Terri não estava moribunda. Mesmo severamente incapacitada, mesmo sem ter consciência plena do que acontece em sua volta, se continuasse a receber comida e água, ela viveria indefinidamente. Todos aqueles que já conviveram com quem já sofreu danos cerebrais gravíssimos, incapacitantes e irreversíveis sabem que não estão mais diante da mesma pessoa, mas certamente continuam diante de uma pessoa. De uma pessoa humana, fraca, indefesa, incapaz, mas, ainda assim, uma pessoa.

Em outubro de 2002, a Corte de Apelações da Flórida ouviu cinco médicos: dois indicados pelo marido, um, pelos juízes e dois, pelos pais. Os três primeiros declararam que Terri era vítima de um persistente estado vegetativo, sem nenhuma consciência, sem sentir dor: suas expressões faciais, as reações à luz, ao toque e aos sons seriam apenas atos reflexos e autômatos. Os médicos indicados pelos pais disseram que não podiam afirmar se tais atos eram ou não produto da consciência ou do que restou dela. Disseram mais: Terri poderia ter avanços na sua capacidade de entendimento. A Corte ficou com a opinião da maioria e autorizou que a alimentação fosse interrompida.

Vi alguns dos vídeos feitos pelos médicos e pela família. Em um deles, a mãe de Terri diz coisas carinhosas e sussurra algo em seus ouvidos: a expressão facial de Terri, antes contraída, relaxa e seus olhos e lábios fazem aqueles movimentos típicos do que chamamos de sorriso. Três médicos chamaram isso por outro nome: reflexo. Os outros dois foram mais humildes: quem poderá dizer, com certeza, que aquilo não foi mesmo um sorriso? O eletroencefalograma de Terri jamais foi compatível com o diagnóstico de morte cerebral, pois sempre indicou alguma atividade, desordenada, atípica, tênue, própria àqueles que têm um cérebro altamente danificado. Mas sempre houve atividade. Após a morte de Terri, o presidente Bush disse que, havendo dúvidas, a sentença deve ser sempre favorável à vida. Eu concordo com ele.

O caso de Terri nada tem a ver com eutanásia nem com ortoeutanásia. Pode-se discordar de quem defende a eutanásia, mas é imperativo reconhecer que o seu princípio é abreviar o sofrimento dantesco de um paciente que inevitavelmente morrerá num curto espaço de tempo: consciente da proximidade e da inevitabilidade de sua morte, o paciente solicita ajuda para abreviar o seu sofrimento. Na ortoeutanásia, o paciente impede que se prolongue, de maneira artificial, uma morte que será certa e breve. O caso de Terri não se enquadra nem num caso nem no outro. Alimentada, ela permaneceria viva por tempo indefinido.

A Humanidade desceu muitos degraus com a decisão da Justiça americana favorável à morte de Terri. Negar alimentação a uma pessoa indefesa, por treze dias, até que morra de fome e sede é algo de uma crueldade que eu jamais imaginei que pudesse contar com o amparo de um Estado constituído. A decisão impõe dilemas éticos intransponíveis. Se é legítimo concordar com a eliminação física de Terri porque ela tem um déficit altíssimo de consciência ou uma consciência próxima do limite zero, será legítimo também fazer o mesmo em relação a casos próximos? O que fazer com recém-nascidos com lesões cerebrais gravíssimas? O que fazer com pessoas que se tornaram totalmente incapazes, mas, como Terri, sobreviveram? Matá-las, abertamente, é algo quer só uma ideologia totalitária, como o nazismo, poderia aceitar. A justificativa de que Terri estava ¿ligada¿ a tubos não se sustenta. Assim como aqueles que perderam o intestino e são ligados a bolsas higiênicas, Terri tinha uma sonda que levava comida e água diretamente ao estômago. Mas ela não estava presa a uma máquina. Na hora da alimentação, usava-se a sonda; nos demais momentos, Terri podia ser transportada numa cadeira de rodas, pegar sol, ser levada de um ponto ao outro. É isso o que mostram as imagens que durante meses inundaram o nosso lar.

Aqui nas ruas de Roma, onde me encontro para cobrir os funerais do Papa, católicos do mundo inteiro se mostram tristes mas resignados diante da morte de João Paulo II. Não há quem lamente que nada se tenha feito para que a vida do Papa fosse prolongada artificialmente. Mas desejar a morte porque a vida que se tem não é aquela com a qual estamos acostumados é algo que não se pode aceitar.

Carrego a certeza de que a repercussão que o caso teve contribuirá para que tal postura do Judiciário americano seja revista. Talvez, a interferência política do Executivo e do Legislativo americanos, legítima ou não, tenha contribuído para que o Judiciário tenha se mantido tão coerentemente irredutível. Longe do calor político, depois de uma reflexão serena, posições serão revistas. Será tarde para Terri. Mas não para a Humanidade.

ALI KAMEL é jornalista.