Título: O NEPOTISMO E A BATALHA DA LEI CONTRA O COSTUME
Autor: Roberto daMatta
Fonte: O Globo, 06/04/2005, Opinião, p. 7

Meu título se inspira no famoso quadro ¿A Batalha do Carnaval contra a Quaresma¿ pintado em 1559 por Peter Bruegel, o Velho. Nele vemos, do lado direito, uma procissão liderada pela magra Sra. Quaresma e seus seguidores virtuosos que sai de uma igreja; no lado esquerdo um gordo e debochado Sr. Carnaval seguido de celebrantes da sensualidade e da alegria deixam uma taverna para enfrentá-la.

Esse é um tema recorrente na pré-modernidade européia, matéria paralela ao persistente debate entre as paixões, proibidas como pecados pela igreja medieval; e os interesses coletivos, tidos como positivos e, mais que isso, contrários ao que se tomava como a selvageria dos impulsos individuais. A modernidade tem como base precisamente essa transformação perturbadora das paixões dignas do carnaval (ocultas e condenadas) em interesses (requeridos e aprovados), próprios da Quaresma, naquilo que ficou marcado como a passagem dos vícios privados para virtudes públicas, cerne de uma velha (mas oculta) discussão da modernidade brasileira.

Relativamente a esta dramática passagem, o melhor exemplo que conheço não é o do padeiro egoísta de Adam Smith, mas o legado pelo primeiro governador de Massachusetts, John Winthrop (1588-1649). Quando, num inverno particularmente rigoroso, Winthrop se defrontou com um vizinho que roubava lenha do seu celeiro, ele chamou o homem a sua presença e, em vez de puni-lo, condenou-o ``a honestidade, dando-lhe permissão para que apanhasse o que fosse necessário ao aquecimento de sua casa.

Se fosse um governador brasileiro pensando na sua reeleição, ele pediria aos gritos uma nova lei contra o roubo de lenha e provavelmente teria que se defrontar com um ¿jeitinho¿ porque o frio do inverno e o direito de ter um lar aquecido seriam mais forte do que uma ética legalmente construída ¿ correção feita apenas na tal ¿letra da lei¿. Mas como Winthrop era moderno, preferiu agir positiva e realisticamente, transformando a vergonha e o crime em virtude. Com isso, conjugou a prática com a lei, fazendo com que ação e legalidade, necessidade social e direito caminhassem na mesma direção.

Falo nisso porque em breve teremos uma discussão semelhante entre nós. Quero me referir ao plano de votar mais uma lei contra o ¿nepotismo¿ que, com o advento da era severina, volta à cena, tal como ocorreu ¿ lembram-se? ¿ no início do governo Sarney. A discussão do nepotismo, como a do carnaval, dos dinheiros dos congressistas, das aposentadorias milionárias e coisas do mesmo teor, como o nosso preconceito racial e o jogo do bicho, são temas contraditórios e, no limite, tabus.

Não existe ninguém a favor, até que a pessoa se veja metida numa situação na qual ela é ¿obrigada¿ a ¿infelizmente¿ ser preconceituosa ou nomear o parente conforme falamos com penosa, culpada e cínica inocência. A ausência de discussão é facilitada pela concepção brasileira dos ¿direitos¿. Direitos legitimados sem discussão profunda e por uma ética que fala mais da vantagem facultada pela lei do que de uma real reposição moral. Assim, se são leis que promovem os benefícios, basta votá-las ou erradicá-las. Se são leis que ordenam o fim do preconceito, basta aplicá-las. Se são as leis que proíbem o nepotismo, basta inventá-las. No fundo, tem gente que ainda pensa que a revolução poderia ¿vir¿ por um decreto ou medida provisória¿

Mas será que as sociedades, com seus valores e práticas sociais, são mesmo gerenciadas pelo Estado e suas leis? Seria mesmo possível melhorar a qualidade das ruas brasileiras apenas com um novo e moderno Código de Trânsito? O espírito de Gilberto Freyre, que está aqui do meu lado, diz que não. Que estamos a repetir, como ele dizia, o erro dos republicanos que mudaram todo o desenho institucional do Estado, esquecendo-se, entretanto, de fazer o mais importante: preparar a sociedade para as mudanças que paradoxalmente estavam tentando realizar.

Não estaríamos cometendo o mesmo erro ao condenar, de saída, a paixão pelo nepotismo, proibindo-o legalmente, mas perdendo mais uma vez a oportunidade de entendê-lo como um costume? Como algo que também permeia a nossa mais profunda identidade? Ninguém é a favor da privatização da chamada ¿coisa pública¿. Mas quem é contra a ajuda aos filhos, sobrinhos, mulheres, primos e netinhos? Ou ao famoso ¿apoio¿ aos amigos e companheiros (altos, médios e baixos)? Seria possível ¿entrar no governo¿ e, em nome da ¿isonomia¿ ou da probidade legal, ¿abandonar¿ as razões (e moralidade) da parentela e da genrofilia?

Como seria julgado em casa, pelos seus parentes e amigos, o eleito que, em nome da lei, simplesmente ignorou os pleitos feitos no travesseiro, na cozinha, e no almoço de domingo por sua mulher, irmãos e mãe?

Sejamos honestos. Como é que procedemos quando entramos na batalha da lei contra o costume? Rompemos com o costume ou damos um ¿jeitinho¿ na lei? Ou deixamos para ver como é que fica? O dilema é claro: até onde vamos continuar criminalizando práticas sociais seculares? Não seria melhor fazer como os modernos e transformar paixões e pecados em interesses? Não seria a hora de discutir menos uma proibição impossível (e, pior que isso, hipócrita) do nepotismo e muito mais as suas razões sociais profundas? Não seria o caso de criar quotas de parentes a serem facultativamente nomeados pelos nossos ilustres políticos, mas com o compromisso de que essas nomeações fossem anunciadas e justificadas publicamente pelo próprio representante do ¿povo¿? Aposto que esse remédio seria bem mais eficaz do que as tais leis que chegam e não pegam porque passam por cima dos costumes ou estão contra eles.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.