Título: PAPADO COMPLEXO E DINÂMICO
Autor:
Fonte: O Globo, 04/04/2005, Especial, p. 2

Éimpossível resumir um pontificado como o de João Paulo II em poucas linhas. Afinal, foram mais de 26 anos de uma atividade febril, ininterrupta, que nos produzia vertigens. Por isso, em lugar de resumir tudo o que ele fez, tentarei destacar alguns pontos que me parecem mais marcantes.

O primeiro foi a atuação diplomática, em grande parte silenciosa, mas imensamente eficaz. Sem divisões armadas, sem conferências espetaculares, sem apoio a guerrilhas ou a ações terroristas, sem derramamento de sangue, João Paulo conseguiu algo que parecia impossível: a reunificação da Europa. Como ele próprio falara repetidamente, era necessário que a Europa voltasse a respirar com os dois pulmões, o ocidental e o oriental. A começar pela sua Polônia nativa, o apoio do Papa foi decisivo para que a cortina de ferro fosse retirada definitivamente. Ninguém mais vê hoje qualquer perigo de conflagração generalizada na Europa.

O segundo ponto que merece destaque é a ingente obra literária que deixa atrás de si João Paulo II. As suas 14 encíclicas ¿ desde a primeira, Redemptor Homins, até mais recente, Ecclesia de Eucharistia ¿ constituem um tratado completo de teologia, com uma ênfase especial na antropologia teológica. Se acrescentarmos ainda as 15 Exortações Apostólicas, especialmente as pós-sinodais e algumas séries de discursos, como os dirigidos anualmente ao Tribunal da Rota Romana, ao corpo diplomático perante a Santa Sé, ou aos integrantes da Cúria Romana, teremos um conjunto gigantesco de documentos doutrinários como nunca antes um Papa nos legou, nem sequer Leão XIII, apelidado de ¿o Papa das encíclicas¿. Todos os âmbitos da cultura foram por ele percorridos; todos os temas da nossa atualidade, desenvolvidos; todos os problemas do nosso tempo, examinados. Passarão muitos anos até que se possa fazer uma síntese completa do seu pensamento.

O terceiro ponto que desejo destacar é a atuação ecumênica. Como ele próprio falou, em 1985, para os integrantes da Cúria Romana, o Papa não considera o ecumenismo como uma opção pessoal, mas como uma exigência que brota do próprio ser da Igreja. A encíclica Ut unum sint nos mostra o caminho do ecumenismo como algo ineludível. A declaração conjunta católico-luterana, sobre a justificação por fé e graça é uma das realizações mais marcantes neste campo. Há, contudo, um ponto onde a meta não foi alcançada: a reconciliação plena com os cristãos ortodoxos, tão sonhada e tão ardentemente perseguida por João Paulo II. Mas, ao lado do diálogo ecumênico, não podemos esquecer o diálogo inter-religioso, de modo especial o diálogo com os judeus. O Papa Wojtyla foi o primeiro Romano Pontífice a entrar numa sinagoga. Não teve medo de encarar possíveis erros da Igreja no seu relacionamento com os fiéis de outras confissões cristãs ou de outras religiões. Promoveu estudos e encontros sobre temas tão espinhentos como o Holocausto, a Inquisição ou a atuação da Igreja durante a II Guerra Mundial. Foi ao encontro de todos com a mão estendida.

Um quarto ponto que deixa marca é a universalização da presença da Igreja. João Paulo II, com a sua peregrinação pelos cinco continentes, a tornou visível em 129 países, com as suas mensagens pascais e a suas saudações às multidões, a fez falar em mais de cem línguas. Ainda mais, ao promover Sínodos especiais para as diversas regiões, mostrou que nenhuma problemática lhe é alheia. As Exortações Apostólicas pós-sinodais traçam um panorama completo da situação e das tarefas em cada continente. Creio que tais exortações ¿ no nosso caso, a Exortação Ecclesia in America ¿ não foram devidamente refletidas e não foi tirado delas o riquíssimo fruto que podem produzir.

Finalmente, como um quinto ponto a ser destacado, considero extremamente importantes as canonizações e as beatificações realizadas por João Paulo II. O seu número ultrapassa o das realizadas por todos os papas que o precederam. Foram 482 canonizações feitas por ele, contra 302 promovidas por todos os seus predecessores; e 1.338 beatificações. Além disso, o modelo de santidade proposto à veneração dos fiéis não ficou restrito aos povos católicos da velha Europa, nem aos sacerdotes e religiosos, mas se estendeu a todos os povos, a todas as idades e a todas as condições sociais. O Papa Wojtyla, com o reconhecimento de tantos que foram atingidos pela graça de Deus, demonstrou que literalmente vivemos no meio de santos.

Falei exclusivamente dos atos pessoais do Papa, sem entrar na ação da atividade da Cúria Romana durante o seu pontificado, que mereceria uma atenção à parte. Inclusive porque, embora a Cúria atue com e sob a autoridade do Papa, não deixa de haver nela características bem pessoais daqueles que ocupam os postos de direção das suas diversas repartições. Mas aí a reflexão nos levaria bem longe. Os cinco pontos enumerados traçam um perfil bem nítido e interessante do Romano Pontífice que marcou mais de um quarto de século da vida da Igreja Católica.

JESUS HORTAL é jesuíta e reitor da PUC-Rio