Título: Nasce o culto a `São João Paulo II¿
Autor: Deborah Berlinck, Gina de Azevedo Marques e Monica
Fonte: O Globo, 05/04/2005, Especial, p. 1

Oculto começa aqui. Não se consegue perceber a menos que se preste atenção. Sua origem está no verso de um cartão de visitas entre velas e fotografias do Papa João Paulo II, num santuário improvisado no meio da Praça de São Pedro. A inscrição diz, em espanhol: ¿São João Paulo II, interceda pela saúde de seu filho.¿

O falecido Papa canonizou mais santos do que qualquer um de seus antecessores modernos. Alguns deles, como Josemaria Escriva, fundador da Opus Dei, num período duas vezes mais rápido. Mas mesmo ele nunca criou um santo do dia para a noite.

Imagem confundida com a de Cristo

O sentimento de perda é tão intenso, tão poderoso é o culto à personalidade que se formou em torno de Karol Wojtyla após ser eleito Papa em 1978 e que foi crescendo em 26 anos, que é isso o que está acontecendo aqui.

Do sofredor Vigário de Cristo, representando com sua própria, lenta e agonizante morte o Calvário de Cristo (como muitos devotos viram isso), ele saltou para as fileiras de santos.

O cartão com a mensagem estava entre dezenas de orações e cartas, fotografias, pinturas de crianças, corações desenhados, buquês de narcisos e lírios e muitas velas sobre e ao redor de um poste de ferro na praça.

Katja Raithel, uma turista alemã, lembra-se de quando a mãe a mandava fazer silêncio para ouvirem a Missa da Páscoa do Papa num rádio velho.

¿ Certamente teremos afeição pelo próximo papa, mas este ficará em nossos corações ¿ disse.

As velas, flores e fotos aumentam a cada momento. As pessoas chegam, com jeitinho acrescentam sua própria vela ou mensagem ou fotografia ao monte crescente e instável, depois se afastam e se ajoelham em oração, ou se viram como que embaraçadas e vão embora rapidamente.

É como se nas mentes de muitos dos devotos, as pessoas do Jesus sofredor e de João Paulo II sofredor estivessem sobrepostas. A fotografia mais comum é da obra-prima em mármore de Michelangelo que fica dentro da Basílica de São Pedro, a poucas centenas de metros, da Virgem Maria com o corpo sem vida do filho nos braços.

¿Papa¿, diz uma mensagem, ¿o senhor sofreu muito por nossos pecados. Rezamos pelo senhor, desejamos que descanse em paz¿. É como se a fé em Jesus e em Deus, nesses tempos seculares, fosse um desafio muito distante ¿ enquanto a fé naquele surpreendente homem idoso, que na quarta-feira passada lutava para respirar e se esforçava para falar da janela do Palácio Apostólico, torna-se fácil.

Ninguém realmente o conheceu, exceto um pequeno e fechado grupo de pessoas íntimas, na maioria padres e freiras e professores poloneses. Apesar disso, milhões sentiam que o conheciam, tão forte era o seu carisma. E essa emoção intensa e irreal ¿ como a falsa sensação de intimidade que se tem com celebridades e a realeza ¿ sobrevive incólume à sua morte.

¿ Ele tornou a Igreja mais humana, mais próxima às pessoas reais ¿ disse Giorgio Arduini, que prestava suas homenagens em nome de sua mulher, presa a uma cadeira de rodas.

Anúncio da morte quebrou tensão

Quando João Paulo II morreu, o anúncio veio dos alto-falantes, e o silêncio na praça foi total. Ele foi quebrado por uma salva de palmas. E nesse momento a tensão foi quebrada também. Ele havia sido libertado. Seus sofrimentos chegavam ao fim e o dos fiéis também, por sua causa. Havia lágrimas, naturalmente, rios delas, por sua morte, mas em minutos as pessoas já conseguiam falar de alegria também.

¿ Fico triste por ele ter partido ¿ disse uma mulher andando na multidão, com o marido e seu bebê. ¿ Mas sinto alegria porque ele está livre do sofrimento.