Título: Amigo lembra resistência de Wojtyla na arte e na fé
Autor: Deborah Berlinck, Gina de Azevedo Marques e Monica
Fonte: O Globo, 05/04/2005, Especial, p. 1

Poucas pessoas conheceram tão bem o Papa João Paulo II quanto Mieczyslaw Malinski, um padre de Cracóvia que conviveu com Karol Wojtyla desde os anos dramáticos da ocupação nazista da Polônia. Os dois foram colegas de seminário, passaram por muitos apertos, sobreviveram quase por um milagre, e mantiveram a forte amizade até o final, como disse Malinski, de 81 anos, pouco antes de embarcar para o Vaticano, onde participará das cerimônias fúnebres.

Enquanto Wojtyla se tornou Papa, Malinski continuou sendo padre e ainda hoje celebra missas, na Igreja de São Francisco, em Cracóvia. Entre seus mais de dez livros, todos sobre temas religiosos, há uma biografia de João Paulo II, que tenta explicar como o Papa se tornou a pessoa que foi, escrita do ponto de vista de um profundo conhecedor de Wojtyla.

¿ Karol Wojtyla sempre foi uma pessoa corajosa, disposta a lutar e nunca abriu mão de suas convicções com medo de algum poderoso ¿ diz.

Essa foi a postura que ele teve em relação a nazistas e comunistas. De 1940 a 1944, o homem que seria Papa foi trabalhador escravo de uma empresa química que era estratégica para os alemães, que na época ocupavam a Polônia e estavam em guerra contra quase toda a Europa.

Wojtyla trabalhava até perder as forças, sempre vestido com o uniforme do trabalho forçado ¿ um macacão azul ¿ mas no seu escasso tempo livre não queria descansar, e sim ler poesia e rezar.

¿ Ele tinha uma organização religiosa leiga chamada ¿o terço vivo¿. Os encontros costumavam ser realizados à noite, em parte para evitar que os nazistas nos descobrissem ¿ conta ele.

As reuniões eram não somente de orações, mas de discussões sobre a situação da Polônia ocupada, e sobre os crimes bárbaros dos nazistas. Mas a dissidência era apenas espiritual, não havia contato com a resistência armada.

Assim mesmo, um dia Karol Wojtyla passou horas escondido num porão, durante uma blitz da Gestapo, a polícia secreta de Hitler.

¿ Se tivéssemos sido pegos, teríamos com certeza sido deportados para Auschwitz ¿ lembra Malinski.

Auschwitz, o maior campo de extermínio dos nazistas, ficava a apenas poucos quilômetros de Cracóvia e era o endereço certo para quem praticasse a menor forma de resistência.

No início de agosto de 1944, depois de uma rebelião da resistência polonesa em Varsóvia, que foi aniquilada com brutalidade, o governo alemão na Polônia, comandado por Hans Frank, um dos maiores aliados de Hitler e da doutrina da supremacia racial, os nazistas iniciaram uma ação de ¿limpeza¿ também em outras cidades polonesas para evitar qualquer manifestação de resistência.

Quando os agentes da Gestapo invadiram o prédio onde Wojtyla reunia-se para as sessões de oração, teatro e poesia, em Cracóvia, ele foi obrigado a passar horas escondido.

Além de rezar o terço, Wojtyla e seus colegas realizavam sessões de teatro, ¿um teatro religioso e patriota¿, chamado de ¿teatro de rapsódia¿, o que era inteiramente proibido pelos nazistas, que não permitiam aos poloneses sequer estudar no seminário.

¿ Foi uma situação muito perigosa ¿ lembra.

Segundo o padre, a experiência de viver como trabalhador escravo num país ocupado despertou no jovem Wojtyla o mais profundo sentido de justiça e a aversão à guerra e à ditadura. Esse histórico formou praticamente a visão de mundo que o acompanhou até o final.

Depois da guerra, a resistência de Wojtyla contra os comunistas foi mais sutil, mas nunca deixou de existir. Malinski conta como em 1959, quando já era bispo, Wojtyla realizava missas a céu aberto, mesmo com frio intenso e até quando nevava, para os trabalhadores de Nova Huta, com o objetivo de provocar o governo comunista e pressioná-lo a permitir o funcionamento de igrejas. Na época, o partido comunista receava o excesso de influência da igreja .

Malinski concorda com o ex-presidente Lech Walesa de que o papel do Papa para o fim do comunismo na Europa foi muito maior do que o registrado pelos livros de História. (G.M.R)