Título: Desafios do papado no século XXI
Autor: Deborah Berlinck, Gina de Azevedo Marques e Monica
Fonte: O Globo, 05/04/2005, Especial, p. 1

O próximo papa terá diante de si, como chefe da Igreja Católica, uma enorme lista de desafios que exigirão uma boa quantidade de dedicação e energia para serem enfrentados, num mundo bem diferente do que era em 1978, quando João Paulo II iniciou seu longo pontificado. Uma série de questões que nem estavam em pauta ou apenas começavam timidamente a se insinuar ¿ células-tronco, clonagem, casamento gay, islamismo militante, crescimento do evangelismo pentecostal ¿ povoará a agenda do novo Pontífice. Por outro lado, o que era uma preocupação central da Igreja ¿ o comunismo ¿ deixou de sê-lo.

As mudanças que contribuíram para deslocar o eixo temático da política para outras questões foram em parte desencadeadas pelo próprio Karol Wojtyla quando retornou já Papa à sua Polônia natal em 1979, encorajando os poloneses a abrirem uma brecha no comunismo ateu contra o qual a Igreja Católica mobilizava todas as suas forças. Levantada a Cortina de Ferro com a queda do Muro de Berlim em 1989, ele pôde então canalizar sua energia para os desafios do fim de século.

Cardeais devem pesar prioridades da Igreja

Dessa forma, nas semanas que precedem o conclave, os cardeais estarão discutindo entre si não somente quem deve liderar, mas quais são as prioridades da Igreja. E o próximo papa enfrentará desafios tão urgentes que muitos líderes da Igreja e analistas acreditam que mesmo um pontífice com o carisma e a capacidade de João Paulo II terá de recorrer a uma estratégia de triagem.

Um desses desafios é o rápido desenvolvimento da ciência e da tecnologia. A clonagem, a pesquisa de células-tronco e as novas possibilidades de seleção genética serão um teste sobre como aplicar os ensinamentos morais da Igreja sobre a santidade da vida. Conferências no Vaticano têm levantado essas questões, mas a Igreja precisará de um papa que seja guiado por uma clara visão de como agir.

¿ Muitos cardeais eleitores têm a idéia de que o mundo terá, na melhor das hipóteses, uma janela de 10 a 20 anos para construir as estruturas regulatórias e legais necessárias à canalização do novo conhecimento genético e seu casamento com a tecnologia, em rumos que levem à cura e ao genuíno florescimento humano, em vez de um pesadelo ¿ disse George Weigel, teólogo católico e professor do Centro de Ética e Políticas Públicas.

Um outro campo minado aparece na área dos costumes, com temas como casamento gay, aborto e eutanásia ganhando força nos debates internos em diversas sociedades do Ocidente, contrariando posições sólidas da Igreja. Alguns países já incorporaram esses temas às suas estruturas legais, o que sinaliza que o caminho está aberto para que outros o façam. O novo papa enfrentará pressões de vários lados para modernizar o catolicismo de acordo com o século XXI, passo que João Paulo II ¿ um reconhecido conservador nessa área ¿ não quis dar. Um indício do que vem pela frente está numa pesquisa do Instituto Gallup divulgada ontem, indicando que 80% dos católicos americanos entrevistados acham que a Igreja deve liberar o uso de contraceptivos. Além disso, 55% acreditam que o próximo papa deve permitir a ordenação de mulheres, algo que bispos na Ásia, onde há uma grande escassez de padres, já começam a pedir.

Um desafio crucial e delicado para o próximo papa são as relações com o Islã numa época de ascensão do islamismo militante. A Igreja sob João Paulo II concentrou-se em suas relações ecumênicas com os judeus e o cristianismo ortodoxo. Mas agora, diz Daniel Thompson, professor de teologia e estudos religiosos da Universidade Fordham, o diálogo entre fés mais urgente deve ser com os muçulmanos.

¿ O próximo papa deve estabelecer uma direção clara para isso ¿ aconselha.

Globalização acentua questão multicultural

O desafio na América Latina ¿ onde vivem quatro de cada dez católicos ¿ e entre hispânicos nos EUA é a proliferação de igrejas pentecostais com suas redes assistencialistas para os pobres rurais nas cidades. As igrejas evangélicas e pentecostais são movidas por pastores ¿ freqüentemente leigos ¿ que superam em número o clero católico. A falta de padres é um problema grande nesse sentido. Se, por um lado, a Igreja cresceu em 250 milhões de fiéis no pontificado de João Paulo II, o número de padres continuou o mesmo: cerca de 400 mil. E onde a Igreja deve mandar os padres quando eles são necessários em toda parte?

Os desafios não param por aí. Se a queda do comunismo por um lado foi um alívio para a Igreja Católica, por outro deu rédea solta ao capitalismo com suas desigualdades sociais. A Igreja está perdendo a força na Europa, enquanto nos Estados Unidos luta para tornar sua mensagem relevante numa sociedade materialista, onde até a religião é orientada pelo mercado.

¿ Uma questão que a liderança da Igreja tem de perguntar-se é se vai investir a maior parte de seu tempo, dinheiro e energia no que se costumava chamar o Terceiro Mundo ou se vai tentar trazer de volta a Europa e os Estados Unidos do materialismo que João Paulo II dizia ser a maldição do capitalismo ¿ avaliou Christopher Bellitto, editor acadêmico das Edições Paulinas, uma grande editora católica.

E, num mundo globalizado, o multiculturalismo ¿ embora uma questão já antiga para a Igreja Católica ¿ apresenta-se como uma questão renovada na definição dos limites à adaptação da instituição às culturas locais.

¿ Quando a Igreja Católica era uma igreja mediterrânea ou européia ocidental, era mais fácil decidir. Agora há todas essas culturas, línguas e povos tentando encontrar seu caminho dentro de uma união comum ¿ disse o reverendo Ian Douglas, professor de cristianismo global na Escola de Divindade Episcopal em Cambridge, Massachusetts. Com o New York Times e agências internacionais