Título: Os cinco minutos
Autor: Deborah Berlinck, Gina de Azevedo Marques e Monica
Fonte: O Globo, 05/04/2005, Especial, p. 1

Quando me lembro de João Paulo II, o que me vem à cabeça é, sobretudo, um incidente em sua vida que não durou mais de cinco minutos. Aqueles cinco minutos não têm a ver diretamente com o que mais o caracterizou ao longo de sua vasta carreira: não se trata de seu papel decisivo para derrubar o Muro de Berlim; nem daquelas pregações ¿ as primeiras de um papa ¿ numa sinagoga e numa mesquita e numa igreja luterana; nem tampouco sua crítica à invasão do Iraque ou seu antagonismo às forças mais progressistas de sua Igreja. Aquilo que me vem à memória, e que resume para mim tanto o carisma como as contradições de seu longo reinado, foi um diálogo que manteve em abril de 1987, exatamente 18 anos antes de sua própria morte, com cem mil jovens chilenos no Estádio Nacional de Santiago nos tempos em que o general Pinochet desgovernava o meu país.

Eu ainda estava exilado nessa época, mas recolhi dos vários participantes os vaivéns desse intercâmbio verbal que João Paulo II manteve com aqueles adolescentes que, devido à sua visita, por fim tinham uma conjuntura para se manifestar abertamente num país que os havia ignorado durante tantos anos.

Embora o Papa tivesse sido fotografado na sacada do palácio presidencial, a juventude chilena abraçou fervorosamente a mensagem de paz que o Supremo Pontífice trazia ao país. De forma que, quando João Paulo II lhes perguntou, num excelente castelhano, se renunciavam aos demônios da avareza, a resposta foi um sim estrondoso, e quando voltou a interpelá-los se por acaso estavam dispostos também a renunciar aos demônios da violência, o sim que se escutou foi ainda mais ensurdecedor. E foi então que o chefe da Igreja Católica se entusiasmou, e pode ter se equivocado ao não se dar conta de como haviam sobrevivido à repressão aqueles febris adolescentes. Decidiu saber se a multidão de jovens estava pronta a renunciar aos demônios do sexo, e sobre este ponto tampouco houve, segundo me contam, a menor vacilação. De dentro dos genitais e do sangue galopante desses cem mil corpos, do mais profundo das cem mil gargantas, ouviu-se um Não irrevogável e categórico.

Não é de se estranhar a resposta unânime. Numa pátria onde não tinham trabalho; onde o temor era seu professor e a educação, um desastre; onde o espaço público se mantinha sob o controle de forças armadas rígidas e censuradoras, esses jovens haviam conseguido sustentar uma única zona íntima que podiam chamar de inteiramente sua. Essa era sua identidade transitória, seu prazer contra a morte: o amor carnal, o contato com o outro, a outra, o sussurro das mãos recíprocas na escuridão. E não estavam dispostos a entregar seu canto de liberdade a ninguém. Nem a seus pais, nem a seus professores, nem a seu governo. E tampouco, mesmo o idolatrando muito, ao Papa.

E ali estavam sobrepostos, naqueles mínimos cinco minutos, os dois lados de um único Papa, o paradoxo central de sua existência. A mesma voz que sistematicamente rechaçava a violência que ameaçava assolar a Humanidade, que deplorava a insaciável busca de lucros que devora os pobres do planeta, que pedia aos poderosos que fossem os guardiões dos pássaros e das águas e dos fracos e dos extraviados e das crianças, sim, essa voz também vinha de um homem que era incapaz de manejar com maturidade qualquer coisa que tivesse a ver com a sexualidade humana, um homem cego para enfrentar os desejos e os apetites que fluem gloriosa e confusamente daquelas comarcas que existem de nossa cintura para baixo. O mesmo Papa que defendia o direito de todos nós a eleger democraticamente nossos governantes (ainda que ele tenha sido autoritário dentro de sua própria Igreja, particularmente na América Latina, onde freou o desenvolvimento da Teologia da Libertação), não podia entender que essa democracia tinha que incluir necessariamente o direito a escolher como temos de amar e como vamos nos reproduzir e com quem e quando e por quê.

Que pena que o Papa tenha acreditado que era infalível. Podia ter aprendido algo com os cem mil homens e mulheres jovens que ardiam por unirem-se a Deus e que se incendiavam de desejo por juntarem-se com a pele e os lábios e o calor de seu par muito humano e vizinho. Foi uma oportunidade perdida. Nessas respostas discordantes, aquelas vozes que diziam sim e aquelas vozes que depois proclamaram não, nessa vocação por lutar contra a injustiça e aquela certeza simultânea desses jovens desamparados de que não podiam aceitar o julgamento papal de que o sexo fosse um demônio ou que o corpo pudesse sobreviver na solidão, João Paulo II perdeu uma ocasião maravilhosa para se ver e se reconhecer no espelho imperfeito do amor que lhe entregaram como um presente de boas-vindas e despedida naquele estádio sob os Andes. ARIEL DORFMAN é escritor, autor de ¿O longo adeus a Pinochet¿, entre outros, e seu último livro é ¿Memória do deserto¿