Título: Resquícios da ditadura
Autor: MAURÍCIO SANTORO
Fonte: O Globo, 07/04/2005, Opinião, p. 7

A integração da América do Sul é anunciada como prioridade da política externa do governo brasileiro, um pré-requisito para o fortalecimento internacional do país e para a retomada do desenvolvimento. Contudo, a exploração dos recursos naturais do continente, financiada com dinheiro público do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da Petrobras, choca pela lógica predatória, muito semelhante àquela da ditadura militar. Esse padrão já provoca protestos na Bolívia e no Equador e é incompatível com a estabilidade política da região, sendo um dos estopins da crise que quase derrubou o presidente boliviano Carlos Mesa.

O gás natural é a principal riqueza da Bolívia, a possibilidade de desenvolvimento para o país. A população boliviana precisa da tecnologia da Petrobras para extraí-lo e necessita do mercado consumidor brasileiro para tornar o empreendimento viável. Mas para boa parte de habitantes da Bolívia, os acordos de exploração desse recurso natural ¿ assinados com a Petrobras e com outras empresas estrangeiras, como Repsol e BP ¿ beneficiam apenas a elite política e empresarial. Essa desconfiança é acentuada pelas relações estreitas existentes entre a burocracia boliviana e as corporações. Por exemplo, Arturo Castaños, que presidia a estatal boliviana do gás YPFB durante as negociações com o Brasil, agora é um alto executivo da Petrobras Bolívia.

A empresa tem sido alvo de protestos constantes por parte de sindicatos, indígenas e partidos políticos, que destacam os danos ambientais causados pela construção do gasoduto Brasil-Bolívia e pelas operações em áreas de preservação ambiental, como a região do Pantanal, a reserva Pilón Lajas e a área entre Yacuiba e Rio Grande. As reclamações englobam poluição, compra de madeira extraída ilegalmente, erosão e até má conduta de trabalhadores. Foram tantas as queixas contra a Petrobras que foi preciso criar uma ouvidoria para cuidar do processo.

Os movimentos sociais bolivianos chegaram a defender a nacionalização das atividades da extração do gás natural. Mesmo vozes mais moderadas defendem a aprovação de uma nova Lei dos Hidrocarbonetos, aumentando os royalties cobrados das empresas estrangeiras e regulando suas atividades com mais rigor. Os conflitos em torno da aprovação dessa legislação levaram o presidente Mesa a apresentar sua renúncia, que terminou recusada pelo Congresso.

Além da extração do gás, o governo brasileiro financia um grande projeto de infra-estrutura na Bolívia na região dos rios Madera e Bení. Com o apoio do BNDES, de Furnas, da Odebrecht e do grupo Maggi está em construção uma represa na área, para estabelecer um complexo hidroviário voltado à exploração da soja na Amazônia.

Ambientalistas da Bolívia chamam a atenção para os danos ao meio ambiente que esse projeto causará, incluindo riscos à principal área de turismo ecológico do país. O impacto sobre a saúde da população local também é preocupante. Estudos do Foro Boliviano sobre Desarollo e Medio Ambiente apontam a possibilidade de que a represa crie uma zona endêmica de malária na bacia do Rio Bení, onde há parques florestais e reservas indígenas.

Embora a ação do governo brasileiro seja mais forte na Bolívia, seu impacto também atinge outros países, como o Equador. O projeto da Petrobras de explorar petróleo no Parque Nacional Yasuní ¿ região considerada pela Unesco como uma das mais ricas do mundo em biodiversidade ¿ provocou tantos protestos por parte dos movimentos indígenas e ambientalistas que a estatal teve que abrir negociações com a sociedade.

A integração da América do Sul é um passo importante na retomada do desenvolvimento econômico no continente. Mas o governo Lula não deveria repetir os erros do passado, reeditando práticas da ditadura militar que trouxeram apenas devastação e miséria. É necessário um modelo de desenvolvimento em sintonia com o século XXI, que priorize as pessoas e o meio ambiente e dê voz aos novos atores políticos da democracia, como os movimentos sociais.