Título: Fisiologismo revisitado
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 09/04/2005, O País, p. 4

Ao contrário da maioria da opinião pública, que revela crescente descrença na atividade política e uma percepção de que o fisiologismo domina essa atividade, os cientistas políticos mais destacados do país são unânimes em ter uma visão bem menos pessimista da atuação do Congresso.

A própria eleição à presidência da Câmara do deputado Severino Cavalcanti, um político que se firmou no chamado baixo clero pelo corporativismo, sempre ligado a práticas políticas clientelistas, é analisada não apenas pelo que significa de retrocesso, mas pelo desejo de afirmação da classe política diante do centralismo decisório do Executivo.

Os especialistas começam pela discussão do que seja fisiologismo, e Jairo Nicolau, do Iuperj, diz que o termo, assim como populismo, é pejorativo e serve para desqualificar os adversários, mas não para uma análise objetiva. Já Octávio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, lembra que a definição do dicionário, de que fisiologismo é uma atitude ou prática caracterizada pela busca de ganhos ou vantagens pessoais, em lugar de ter em vista o interesse público,¿é tão ampla que quase toda atividade política pode ser taxada de fisiológica¿.

Fabiano Santos, presidente do Iuperj, diz que em um país federativo, de proporções continentais, como é o caso do Brasil, ¿dificilmente questões locais deixariam de pesar de forma significativa nos acordos políticos. Neste sentido, o fisiologismo é fator inarredável da política brasileira, e não apenas do governo FH ou do governo Lula¿. Para ele, porém, ¿o fisiologismo não impede a discussão de questões nacionais¿.

Eles concordam que distribuir cargos faz parte de qualquer governo, como lembra o cientista político Sérgio Abranches. Segundo ele, nos EUA, uma troca de partido na Presidência representa uma troca de titulares de cerca de 20 mil cargos. Na Europa, nos governos de coalizão há distribuição de cargos também. ¿As pessoas buscam o poder pelos cargos em si ou para poder formular e implementar políticas públicas. É assim em qualquer democracia¿, reforça Abranches.

Tenho a impressão de que a percepção popular de que no governo petista existe mais fisiologismo do que nos demais, o que não é verdade segundo os estudiosos, estabeleceu-se porque os próprios petistas, no afã de dominar os cargos mais importantes, são os primeiros a desqualificar os candidatos dos partidos aliados, criando um clima negativo em torno das reivindicações de partidos como o PP, o PTB e o PMDB, que têm a imagem de clientelistas grudada na pele não sem razão.

No entanto, como lembra o cientista político Fernando Limongi, presidente do Cebrap, mesmo que esses partidos tenham uma prática fisiológica, o preço que cobram é sempre muito pequeno porque não têm outra alternativa a não ser o governo. Se tivessem perspectiva de poder, poderiam ficar na oposição à espera, como fez o PT anteriormente, e agora fazem o PSDB e o PFL. Mas os partidos menores são satélites e se acomodam sempre em torno do poder, perdendo, portanto, força de barganha.

Além de o próprio PT ampliar as críticas, os partidos aliados aumentam suas reivindicações em público para se valorizar, analisa Limongi, o que amplifica a sensação de fisiologismo. O fato é que o PT está tendo que negociar com os mesmos obscuros agentes que fazem a política do dia-a-dia do Congresso, o tal baixo clero. Mas o faz de maneira tão mesquinha, guardando o melhor bocado para os seus e as migalhas para os aliados, que não esconde a aversão que lhe dá esse tipo de contato.

Foi esse sentimento de ser um convidado de segunda classe para a festa petista, e a compreensão de que sem seu apoio a festa não se realiza, que fez com que a revolta do baixo clero levasse à presidência da Câmara dos Deputados em Brasília um legítimo representante seu. Enquanto os partidos aliados reclamam cargos e nomeações nos escalões secundários do governo, o festival de nomeações de sindicalistas para as diretorias e os conselhos de estatais como Petrobras, Itaipu e Chesf tem o mesmo sabor de pecado das nomeações fisiológicas atribuídas ao PFL, ao PMDB e ao PP em outras administrações, tão denunciadas pelo próprio PT.

Uma das maiores mordomias existentes, a presidência do Serviço Social da Indústria (Sesi), que já serviu de base para políticas liberais, serve agora de consolo e base política ao sindicalista sem votos Jair Meneghelli, com um salário três vezes maior que o do presidente e um orçamento de fazer inveja ao mais fisiológico dos burocratas. Outro quinhão do poder com caixa avantajado é o Sebrae, que foi dado de presente a Paulo Okamoto, antigo tesoureiro do PT, amigo tão íntimo de Lula, que é quem faz suas declarações de Imposto de Renda.

O sociólogo Francisco Oliveira, professor da USP e petista histórico em dissidência aberta do governo, foi o primeiro a registrar que a elite do sindicalismo passou a constituir uma nova classe social, ao ocupar posições nos conselhos de administração dos principais fundos de pensão das estatais e do BNDES. Só a Previ tem hoje mais de 200 cargos nos conselhos das maiores empresas do país. O cientista político Jairo Nicolau chama de patronagem essa prática que, segundo ele, ¿existe em maior ou menor grau em todos os governos democráticos. A contrapartida de quem tem cargos é garantir apoios¿.

Para Octávio Amorim Neto, uma prática política corresponde realmente ao fisiologismo: a nomeação de parentes para cargos públicos com o fim único, mas jamais admitido abertamente, de se aumentar a renda familiar daquele que nomeia ou daquele que é nomeado. A partir da avaliação de Amorim Neto, pode-se concluir que muito da percepção de que vivemos afogados em clientelismo deve-se à defesa aberta do atual presidente da Câmara do nepotismo, refletindo uma posição majoritária dentro do Congresso.

(Continua amanhã).