Título: CHAMÁ-LO DE CONSERVADOR É IGNORÂNCIA
Autor: D. Eugênio Sales
Fonte: O Globo, 09/04/2005, Opinião, p. 7

Nas últimas semanas a situação crítica da saúde do Santo Padre João Paulo II e a sua morte provocaram uma extraordinária demonstração de amor a Cristo e à sua Igreja. Trágica por um lado, mas bela por outro. Um mundo tão dividido se uniu para manifestações em torno de uma pessoa frágil, mas tão importante para essa humanidade sofrida. O Concílio Vaticano I afirmou que ¿Jesus decidiu edificar a Igreja¿ e o Vaticano II, em Lumen Gentium (nº 18), seguindo o anterior, declarou: Jesus Cristo ¿edificou a Igreja, tendo enviado os apóstolos, como Ele foi enviado pelo Pai¿ (cf. Jo 20,21). ¿Quis que os sucessores deles, os bispos, fossem pastores de sua Igreja até o fim dos tempos.¿ E constituiu Pedro cabeça e alicerce de sua obra salvífica.

O que o mundo assistiu nos momentos de agravamento da saúde de João Paulo II e de sua morte revelam à saciedade a importância do seu papel em preservar a doutrina católica e servir ao bem e à Humanidade. Chamá-lo de ¿conservador¿ revela ignorância. Quem é posto à frente do rebanho para assegurar a autenticidade dos ensinamentos de Jesus, ao cumprir o mais elementar dever decorrente de sua posição, não merece esse título no sentido pejorativo.

Aliás, ele é honroso, quando o contrário seria a traição. João Paulo II foi fiel ao seu papel de pastor que dá a vida em defesa do rebanho. Nessa matéria, têm surgido, em maior número, artigos que me deixam triste, mais ainda nestes dias de via-sacra e calvário. Não tanto pelas acusações a João Paulo II e sim porque os autores se declaram ¿católicos¿ e, supostamente como tais, pregam uma outra doutrina, diferente dos ensinamentos de Jesus.

A lista das reformas propostas inclui a ordenação de homens casados, o celibato opcional, o divórcio, o recasamento, a contracepção, o homossexualismo e a ordenação de mulheres. Esses são alguns desvios, contrários ao magistério da Igreja: vários outros poderiam ser acrescentados. Os que a eles aderem ¿ defendidos por alguns que se denominam ¿ala liberal da Igreja¿ ¿ são, na verdade, propagadores de ensinamentos que divergem da Doutrina do Cristo. Seus adeptos se sentem incomodados pelo fato de o Papa João Paulo II, no cumprimento estrito do seu dever de pastor, ter orientado seu rebanho conforme o depósito da fé, confiado a Pedro e ao Colégio Apostólico. A grande maioria da Igreja seguiu as normas do sucessor de Pedro. O mundo presenciou, nestes dias, um extraordinário apoio a seu pastor legítimo.

Não há duas Igrejas: a liberal e a conservadora. Todo o corpo doutrinário foi confiado por Deus a Pedro e ao Colégio Apostólico. Ele tem a assistência do Espírito Santo e a garantia de sua presença até ao final dos tempos. A missão da Igreja é a mesma de Cristo, que assim afirma: ¿Como o Pai me enviou, eu vos envio¿ (Jo 20,21). O Catecismo da Igreja Católica (nº 765) nos ensina que ¿o Senhor Jesus dotou a sua comunidade de uma estrutura que permanecerá até à plena consumação do Reino. Há, antes de tudo, a escolha dos doze, com Pedro como seu chefe¿.

Diz o Evangelho de São Marcos (3,13-15 ss): ¿Depois Jesus subiu à montanha e chamou a si os que Ele queria e eles foram até Ele. E constituiu doze para que ficassem com Ele para enviá-los a pregar e terem autoridade para expulsarem os demônios.¿ Representavam as doze tribos de Israel, como lemos no Evangelho de São Mateus (19,28): ¿Disse-lhes Jesus: Em verdade vos digo que, quando as coisas forem renovadas (...) também vós, que me seguistes, vos sentareis em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel.¿ Eles são pedras na fundação da nova Jerusalém. Os doze e os outros discípulos participam da missão de Cristo, do seu poder, mas também de sua sorte. Através de todos esses atos, Cristo prepara e constrói a sua Igreja.

Os acontecimentos que precederam a morte de João Paulo II, as extraordinárias manifestações em todo o mundo, vieram mostrar a necessidade dos valores espirituais e morais, em particular nos dias de hoje. Embora a figura central seja o sucessor de Pedro, os resultados se estendem para todas as religiões, enquanto aparece a importância de um homem religioso, uma espécie de emblema, salvador. Aconteceu em parte o que tanto desejou o Santo Padre em seu esforço pela unidade dos cristãos. Os encontros de Assis, nos quais se congregaram os líderes mundiais religiosos, tornaram-se possíveis pelo respaldo que lhes deu o Santo Padre.

A mentalidade reinante no mundo, eivada de positivismo, subjetivismo, iluminismo, restos da Revolução Francesa, cria obstáculos. A morte de João Paulo II provocou uma explosão de unidade em favor dos homens. Veio trazer novas esperanças. Queira Deus que ela abra os olhos e o coração das pessoas de boa vontade para o bem da Humanidade.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da Arquidiocese do Rio de Janeiro.