Título: LÍDERES SUPERAM RIVALIDADES EM FUNERAL
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Fonte: O Globo, 09/04/2005, O Mundo, p. 33

Constrangimento, gafe e momento histórico durante cerimônia para João Paulo II

CIDADE DO VATICANO. Eram representantes de mais de cem países, entre chefes de Estado, de governo, membros de famílias reais, acomodados pelo Vaticano em ordem alfabética em francês ¿ idioma tradicional da diplomacia ¿ para assistir ao funeral de João Paulo II. Mas como a ordem não levava em conta a intrincada política internacional, muitas autoridades viram-se lado a lado com desafetos, o que gerou momentos ora constrangedores ora históricos.

Ocupando lados opostos no debate sobre a guerra do Iraque, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e o da França, Jacques Chirac, foram colocados lado a lado, separados apenas por suas mulheres, nas cadeiras da segunda fila à direita do altar, em frente à Basílica de São Pedro. Num gesto que demonstra a tentativa de reaproximação entre os dois países, Chirac beijou a mão da secretária de Estado americana, Condoleezza Rice.

Mas nenhum gesto entre os líderes mundiais ontem ganhou tanta repercussão quanto os apertos de mão trocados entre o presidente israelense, Moshe Katsav, e os presidentes da Síria ¿ país com o qual Israel está oficialmente em guerra ¿, Bashar Assad, e do Irã, Mohammad Khatami. Acredita-se que tenha sido a primeira vez que um presidente israelense apertou a mão de líderes da Síria e do Irã pós-revolucionário.

¿ Eu disse ¿Bom dia¿ e ele apertou minha mão ¿ contou Katsav, que estava uma fila antes de Assad, à TV israelense.

Houve ainda um segundo aperto de mão entre os dois, cuja iniciativa, segundo Katsav, partiu de Assad. O jornal israelense ¿Yedioth Ahronoth¿ publicou a notícia sob o título ¿Encontro histórico em Roma¿, mas Hagit Cohen, porta-voz de Katsav, disse que era cedo para saber se o gesto renderá frutos diplomáticos.

¿ Não há dúvidas de que é um precedente. Foi um momento histórico e uma oportunidade única ¿ disse Cohen.

Segundo a Síria, o gesto foi apenas uma formalidade protocolar. Israel ocupa desde 1967 as Colinas de Golã, e os dois países tiveram a última negociação de paz em 2000.

De origem iraniana, Katsav contou ter conversado em farsi com Khatami sobre a cidade em que ambos nasceram, Yedz. O fato gerou surpresa porque Teerã chama Israel de ¿pequeno Satã¿ ¿ o ¿grande Satã¿ seriam os EUA.

¿ O presidente do Irã estendeu-me sua mão, eu a apertei e disse a ele em farsi: ¿Que a paz esteja com você¿ ¿ contou Katsav.

O aperto de mão faz parte das missas católicas e é acompanhado da frase ¿a paz de Cristo¿. O simbolismo ganhou mais força no funeral de João Paulo II, lembrado por seus apelos pela paz.

¿ Quem disse que o Santo Padre não opera milagres? ¿ perguntou o ex-presidente da Polônia e prêmio Nobel da Paz, Lech Walesa, ao se reconciliar com o atual presidente, Aleksander Kwaniewski, para quem perdeu as eleições de 1995.

Mas a paz ainda parece distante para o príncipe Charles. Ele já enfrentava o olhar atravessado dos britânicos pelo casamento com Camilla Parker Bowles, hoje, e ontem foi acusado de cometer uma gafe ao apertar a mão do presidente do Zimbábue, Robert Mugabe. Charles estava sentado a duas cadeiras do ditador, cuja entrada está proibida na União Européia.

¿ O príncipe de Gales foi apanhado de surpresa e não estava em posição de evitar o aperto de mão de Mugabe ¿ explicou uma porta-voz do príncipe.

O funeral já havia gerado algumas tensões diplomáticas dias atrás. A China avisara que não enviaria representantes porque o Vaticano mantém relações diplomáticas com Taiwan, que Pequim considera uma província rebelde. O presidente de Taiwan, Chen Shui-bian, por sua vez, aproveitou a rara oportunidade de se reunir com líderes mundiais. Foi a primeira vez que um presidente de Taiwan pisou em solo europeu. Como o governo de Taipé é reconhecido apenas por uns 20 países, costuma ficar confinado à sua ilha.

Outras ausências foram a do presidente da Rússia, Vladimir Putin, que enviou o premier Mikhail Fradkov, e do presidente argentino, Nestor Kirchner, que foi criticado em seu próprio país, principalmente porque os ex-presidentes Carlos Menem e Eduardo Duhalde participaram da cerimônia. Fidel Castro também não foi ao funeral, mas de Havana disse que a presença de Bush era um ultraje:

¿ Agora foram chorar diante do corpo de João Paulo II, que tanto se opôs às guerras, à ordem imperialista, que tanto condenou o consumismo e essa guerra brutal do Iraque. Até onde vai a hipocrisia? Em minha opinião, é um ultraje à memória de João Paulo II.