Título: Fisiologismo revisitado (2)
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 10/04/2005, O País, p. 4

Toda vez que existe uma votação importante no Congresso, há também uma corrida de deputados e senadores ao Palácio do Planalto em busca da liberação de verbas contingenciadas do orçamento federal. Esse ¿é dando que se recebe¿, expressão de São Francisco de Assis utilizada no contexto da troca de votos por verbas pelo então deputado paulista Roberto Cardoso Alves, dá à opinião pública uma péssima impressão da relação entre os congressistas e o Executivo, ampliando a sensação de que o fisiologismo impera no governo federal.

Mas não é assim que os cientistas políticos vêem o panorama político, pelo menos não de uma maneira tão radical. O cientista político Amaury de Souza lembra que esse processo de contingenciamento de verbas para emendas parlamentares foi aperfeiçoado no governo Fernando Henrique, transformando-se no principal instrumento de controle das votações no Congresso: ¿Você transforma algo que é legal, num mecanismo de disciplina de voto. Hoje é o principal mecanismo que o governo tem. Estimula o fisiologismo apenas indiretamente, porque você não está dando dinheiro para ninguém, está apenas deixando de dar dinheiro a quem não vota com você¿, analisa Souza.

Ele diz que é possível achar-se que isso é uma deformação do funcionamento da democracia, ¿mas não tem fisiologia a rigor. A verba que é distribuída é legalmente votada. É simplesmente o uso, pelo Executivo, de um poder constitucional¿. Amaury de Souza diz que, na verdade, houve um decréscimo razoável da fisiologia na atuação do Congresso.

¿Se você pensar como era o processo de formação do orçamento até o escândalo dos anões, houve um ganho enorme¿, diz ele, referindo-se à crise política gerada pela descoberta de um esquema fraudulento de distribuição de verbas na Comissão Mista de orçamento do Congresso em 1993. ¿Os controles que o Ministério da Fazenda passou a fazer, e o do Planejamento também, desde o governo de Fernando Henrique, reduziram muito o espaço. Também a Comissão Mista de Orçamento melhorou muito, houve um amadurecimento importante¿.

Já Fabiano Santos, diretor do Iuperj, diz que o uso das verbas para coordenar apoio no Legislativo pode ser considerado fisiologismo na medida em que estas verbas dizem respeito a políticas de alcance apenas local ¿ o que deve ser considerado como inevitável em nossa política. ¿O importante é que esta utilização não seja feita de tal modo a inviabilizar a agenda nacional ¿ que, obviamente, também é vital para o processo democrático¿.

Santos ressalta que a distribuição de verbas era procedimento normal durante a República de 46, ¿mas nesta época o Congresso tinha maior poder de alocação do que hoje em dia. Por isso, foi considerado à esquerda e à direita como obstáculo à racionalidade econômica e às reformas estruturais¿. Segundo sua análise, ¿a Constituição de 88 não desconcentrou inteiramente os poderes orçamentários conferidos ao Executivo durante o período militar, mas o Legislativo tem lutado para retomar o equilíbrio existente durante a República de 46, e o orçamento impositivo é reforma fundamental desta trajetória¿. Para Fabiano Santos, o fato de já existir hoje em dia uma cultura bem estabelecida de equilíbrio fiscal ¿nos tranqüiliza diante da hipótese de redistribuir ao Congresso maiores poderes de alocação orçamentária¿.

O cientista político Sérgio Abranches, analisando a relação entre o Executivo e o Legislativo, diz que no Brasil ¿há certamente um viés forte para os cargos, em detrimento das políticas públicas¿. Ele atribui isso à crise fiscal do estado, que se iniciou ainda na ditadura, fazendo diminuir a eficácia das políticas. ¿Aqui, existe uma defasagem tão grande entre as necessidades e expectativas da população e a capacidade de provisão dos governos, nos três níveis, que é certo que todo governo, ao final, terminará em frustração de uma grande parcela da população¿, constata Abranches.

Ele diz que ¿se não é possível satisfazer substantivamente essas necessidades e expectativas, dando-lhes soluções estruturais e duráveis, cria-se o incentivo para a política de privilégios, favores, de atendimento àquela parcela crítica para a eleição de cada político e o sistema perde a visão de política pública (policy view)¿. Sendo assim, Sérgio Abranches diz que cabe ao Executivo ¿ter o controle do processo legislativo e uma agenda substantiva consistente, para ele também não perder a visão das políticas públicas e, portanto, a visão estratégica e ficar emaranhado na conjuntura¿.

É nesse contexto que o contingenciamento de verbas entra, como ¿uma condicionante derivada da crise fiscal e, pelas mesmas razões, aumenta a propensão ao clientelismo e à política de favores¿. Por outro lado, no entanto, ¿permite ao Executivo manejar as `torneiras do orçamento¿, transformando a liberação de verbas e de emendas parlamentares em instrumento de controle do processo legislativo e de gestão da coalizão¿. Sérgio Abranches diz que o mecanismo ¿é politicamente funcional e programaticamente deletério¿.

Jairo Nicolau, do Iuperj, tem uma visão crítica sobre a liberação dos recursos aprovados nas emendas orçamentárias dos deputados. Segundo ele, nesses casos ¿a chantagem tem duas vias: dos deputados antes das votações, e do governo, após a liberação. A confiança é assegurada no tempo e é difícil saber quem se beneficiou (ou quebrou o pacto de apoio) primeiro¿. Ele considera o sistema ¿complexo¿ e ressalta que exige ¿uma sofisticada coordenação política para operar¿. Na sua análise, Fernando Henrique ¿operou bem até perder o PFL, e Lula até perder o José Dirceu. É um equilíbrio tênue, mas é assim que tem sido. É assim que o presidencialismo tem funcionado no país¿.