Título: ENTRE A LEI, A MORAL E A SOCIEDADE
Autor: Rosiska Darcy de Oliveira
Fonte: O Globo, 10/04/2005, Opinião, p. 7

Não é de hoje que conhecemos o abismo entre a lei e a sociedade. Sempre se disse que, no Brasil, a lei é mais moderna que a sociedade e que as leis aqui não pegam porque são idéias fora do lugar. Nada disso é verdade quando se trata de questões chamadas morais, em que a lei brasileira é retrógrada face à realidade. Quando o divórcio foi, enfim, admitido, ninguém mais esperava por ele para se separar e ir viver com quem amava. Recentemente, a retirada do adultério do Código Penal provocou uma enxurrada de piadas sobre o número de criminosos até então à solta.

Essa defasagem entre a lei e a realidade é ainda mais dramática quando se trata de assuntos particularmente dolorosos, como a interrupção voluntária da gravidez ou o direito do doente, submetido a um sofrimento atroz, a uma morte digna. A autoridade de legisladores e juízes ainda pretende se exercer sobre o direito de cada um à escolha de seu próprio destino sem perceber a inutilidade de remar contra a corrente de um tempo marcado pela autonomia de decisão.

Com lei ou sem lei, quem decide interromper a gravidez o faz mesmo correndo os riscos inerentes à clandestinidade, que são expressivos e constituem um injustíssimo divisor de águas entre quem tem e quem não tem dinheiro. Quem toma conhecimento do fato, companheiros, maridos, amigos, membros da família, quem quer que seja, aceita a condição de ¿cúmplice¿. Por ano, no Brasil, estima-se um milhão de ¿crimes¿ desse tipo, contando com, em média, quatro a cinco milhões de cúmplices. A lei, inútil, injusta e autoritária, fica aí, como uma espécie de fantasma do tempo em que o pai, o padre ou o juiz ainda eram senhores absolutos do destino das mulheres. Lei não apenas inócua mas odiosa, servindo apenas, enquanto ainda se arrasta, para pôr em risco a saúde e a vida de quem é pobre e indefesa.

O filme ¿Mar adentro¿ traz à tona o debate sobre a decisão extrema de continuar ou não a viver. Quem acompanhou de perto um doente terminal, atravessando a dor, não só da perda mas do calvário de um ente querido, já viu de perto esta questão. Quando alguém decide que não quer mais continuar a sofrer, com que direito negar-lhe a dignidade e o alívio da morte? Quem pode arrogar-se tão desumano poder?

Esses temas têm gerado uma infinidade de debates de caráter religioso ou filosófico, o que é saudável e necessário. Enquanto isso, o que amadurece na sociedade é o exercício da deliberação, a afirmação progressiva da liberdade moral.

As decisões de natureza íntima são hoje tomadas em consulta com as pessoas mais próximas, mais queridas e de maior confiança. As tradições, religiosas ou não, já não têm a força normativa ou impositiva que tiveram no passado. Suas injunções estão sujeitas à crítica e à apreciação e só vigoram quando conseguem convencer. Já não se age porque tem que ser assim, como acontecia em tempos de hierarquia, mas sim porque decide-se que assim seja, porque alguém se convenceu, na discussão com aqueles em quem confia, do acerto de uma opção. O que não está sendo claramente percebido é o irreversível processo de alargamento da liberdade moral, do direito e da capacidade de cada um de deliberar autonomamente sobre sua vida.

Essa nova maneira de se conduzir é o contrário mesmo da leviandade. Torna as pessoas não só mais maduras, como também mais responsáveis, na medida em que não apelam para argumentos e razões herdados sobre os quais não refletiram, sendo, ao contrário, levadas a elaborar seu código moral, assumindo as conseqüências de suas escolhas.

Amadurecem nesse processo não somente os indivíduos, mas sobretudo as sociedades. Já não é mais possível colocar tarja preta sobre nenhum assunto. Da interrupção voluntária da gravidez, ao direito de morrer com dignidade ou de viver com quem bem lhe apraz, a liberdade moral se exerce graças à solidariedade dos mais próximos, e se defende no amplo campo argumentativo que são as democracias contemporâneas.

Políticos que, traficando votos ou comprando opiniões, pensam silenciar debates ou deter, pela força de leis enferrujadas, o processo de modernização da sociedade, estão dando murro em ponta de faca. Esse processo é muito mais profundo do que imaginam, não se refere a um ou outro tema específico, mas constitui a maneira de viver no mundo de hoje.

Nas sociedades em transformação, as instituições só se legitimam se forem capazes de, honestamente, aferir os desejos e necessidades dos cidadãos e trabalhar para que lhes seja dado um estatuto legal. No que concerne à intimidade dos indivíduos elas podem ser interlocutoras, jamais censoras ou polícia. Na ausência dessa sintonia com a realidade vivida tornam-se irrelevantes, como estranhas ao cotidiano das pessoas.

A que instituição você atribuiria autoridade para lhe dizer se pode ou não interromper uma gravidez não desejada? Ou para determinar se sim ou não desligam-se as máquinas que mantém clinicamente vivo, ou melhor, não-morto, alguém que você ama?

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora e presidente do Centro de Liderança da Mulher.