Título: `BOLSA FAMÍLIA NÃO TEM PORTA DE SAÍDA¿
Autor: Wanda Engel
Fonte: O Globo, 10/04/2005, Economia, p. 30

Educadora assume amanhã divisão do BID e organiza PPP social em Alagoas

Bem ao gosto do que se acostumou a fazer em sua vida profissional desde os anos 80, quando assumiu o primeiro cargo público, Wanda Engel está à beira de mais um desafio. Assume amanhã a chefia da Divisão de Desenvolvimento Social do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). É o mais alto posto já ocupado por uma mulher brasileira no banco. Formada em geografia, com mestrado e doutorado em educação, ela embarcou para Washington assim que deixou a Secretaria Nacional de Ação Social, da qual foi titular durante todo o segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Lá concebeu o Projeto Alvorada, embrião do Bolsa Família.

Agora, vai trabalhar com o Brasil (em todos os níveis de governo) e as outras 26 nações latino-americanas pela redução da pobreza e melhora das condições de vida na região. Aqui, tenta instituir na área social as Parcerias Público-privadas (PPPs) que o governo alinhava para a infra-estrutura. A idéia é reunir governo, ONGs e empresários em torno de políticas sociais duradouras em Alagoas. Na entrevista de quase duas horas ao GLOBO, por telefone, ela elogiou o Bolsa Família, mas não hesitou em apontar seu maior problema. O carro-chefe da área social de Lula não tem portas de saída. É indício, alerta, de problemas fiscais e políticos capazes de comprometer a própria existência do programa no futuro.

Sua carreira pública começou nos anos 80, ao assumir a direção do Brizolão (Ciep) da Mangueira. A senhora foi secretária de Desenvolvimento Social do município do Rio, nos anos 90, e assumiu a Secretaria de Ação Social, que tinha status de ministério, até o fim de 2002. Com toda a sua experiência na área, qual a senhora considera o principal problema social brasileiro: a violência, a pobreza, a exploração de crianças?

WANDA ENGEL ADUAN: Todos esses temas são sintomas do principal problema desta nação, que é a desigualdade. Temos é um país que não é pobre, que já chegou a ser a oitava economia do mundo. E que tem uma sociedade institucionalmente desigual. Um país pode melhorar a desigualdade fazendo com que seus ricos sejam menos ricos ou que os pobres sejam menos pobres. A melhor opção, sem dúvida, é a segunda: aumentar a produção de riqueza do país, basicamente, a parte voltada para os pobres. Não quero que os ricos sejam menos ricos, mas alguns privilégios vão ter que diminuir para aumentar os direitos dos pobres. E todos são a favor de diminuir as desigualdades, desde que não mexam com seus próprios privilégios. Não é a pobreza que está por trás da violência, mas os índices altos de desigualdade. Para mim, todas as outras coisas são derivadas da primeira.

Como resolver isso?

WANDA: Os dados todos da década de 90 mostram que o simples crescimento econômico não diminui pobreza. Então, não adianta apostar só no desenvolvimento econômico, mas em mecanismos distributivos, que vão do sistema tributário até prioridades na educação, na saúde e na criação de um sistema de proteção social, um welfare (bem-estar) tupiniquim, que garanta um mínimo de consumo para as pessoas.

No entanto, o que temos visto no Brasil são posições muito críticas em relação aos programas de transferência de renda, algumas em razão do tamanho do Bolsa Família, quase igual ao orçamento do Ministério da Educação...

WANDA: Os pobres no Brasil não são maioria, mas estão num número quantitativamente assustador. O Estado brasileiro chegou a seu limite arrecadatório, tem o maior percentual de arrecadação de taxas da América Latina. Não dá mais para aumentar isso, como se viu no episódio da medida provisória 232. Há que se ter prioridade. Um exemplo: optar por investir na qualidade da educação básica, que é absolutamente necessário, vai tirar dinheiro do ensino superior, onde estão os filhos dos formadores de opinião. Os detratores da criação de uma rede de proteção dizem que pode haver uma dependência. Isso é fato. Mas acho que hoje as redes de proteção social estão enfrentando dois tipos de problema. O primeiro é ter o apoio político para isso, porque evidentemente não é um consenso que se deva estar direcionando recursos para os mais pobres deste país.

Não é?

WANDA: Não é um consenso. Tanto que as críticas, desde o início são grandes a respeito disso. A segunda coisa é como evitar o que eu chamo de sócio-dependência, ou seja, transformar as redes de proteção em programas eternos para pobres eternos. Essa questão é séria porque vai criar para frente problemas fiscais e políticos muito sérios.

A senhora ajudou a criar o Projeto Alvorada e o cadastro único, espécies de pontapé inicial do Bolsa Família. Quais são, na sua opinião, são os pontos positivos e negativos do programa?

WANDA: O Bolsa Família é uma rede de proteção social para as famílias mais pobres, o que é absolutamente necessário e importante no país. Tem um estudo que mostra, por exemplo, que nos países ricos que têm todo o sistema de welfare, quando há crises, o consumo não baixa. Isso faz com que, passando a crise, eles recuperem os níveis de consumo e, portanto, de produção rapidamente. Os países que não têm uma rede de proteção social, quando baixa a crise, desabam. Moral da história: ter uma rede de proteção social é muito bom. O Brasil criou a sua com programas isolados e, depois, juntou tudo no Bolsa Família, que tem um enfoque muito interessante porque quem é pobre não é o sujeito, é a família.

E o problema?

WANDA: O maior problema é justamente a porta de saída. Ou seja, como juntar as oportunidades que vão fazer com que a família, com uma orientação especial, possa sair do programa. Sem isso, no longo prazo haverá problemas fiscais e políticos muito sérios. Isso tem a ver com a sustentabilidade do próprio programa.

O seu novo cargo tem contatos, proximidade com o governo brasileiro?

WANDA: Com certeza. Eu estou coordenando uma cooperação técnica regional para criação de sistemas integrados de informação social. Quer dizer, de alguma forma, é melhorar o sistema brasileiro e expandir experiências como as do México, do Brasil e do Chile para outros países que não avançaram nada neste sentido. A divisão está participando do programa de apoio ao Bolsa Família, de programas na área de saúde, de programas com o governo de São Paulo e está negociando uma estratégia estadual de redução da pobreza e desenvolvimento social em Alagoas.

Como é este programa?

WANDA: Alagoas é um estado pobre e altamente endividado num país em renda média. Ou seja, é representativo dos 70% dos pobres da América Latina. Fazer alguma coisa lá pode ter um efeito de demonstração muito legal. Já estão participando desta iniciativa empresários de São Paulo para testarmos em Alagoas a primeira Parceria Público-privada (PPP) social.

Já tem data para o início?

WANDA: Já está começando a se estruturar a proposta. A idéia da PPP é fazer no social a mesma coisa que se faz na infra-estrutura. Ou seja, ter metas definidas; governo, sociedade civil e empresariado cada um com seu papel. O governo tem de garantir que os programas estratégicos serão permanentes para evitar as trocas nas mudanças de administração. Para o empresariado, sustentabilidade é superimportante.

O setor privado entra como?

WANDA: Entra com dinheiro criando fundos para custear programas sociais ou financiando o trabalho de ONGs com as famílias. Poderia, por exemplo, financiar o trabalho da Pastoral da Criança, que já vem fazendo um trabalho importante de redução da mortalidade infantil. O empresariado entra financiando o trabalho já existente, emprestando sua experiência gerencial, o governo com seus programas e as ONGs com seus serviços.

`Os dados da década de 90 mostram que o simples crescimento econômico não diminui pobreza¿

`Mexer com universidade pública é quase um tabu porque se trata de um privilégio para a elite¿