Título: UM CARDEAL E SEUS COMENTÁRIOS BOMBÁSTICOS
Autor: Cesar Tartaglia
Fonte: O Globo, 10/04/2005, O Mundo, p. 35

Arcebispo que chamou presidente Lula de caótico é conhecido por suas palavras duras e pouco diplomáticas

Chamar o presidente Luis Inácio Lula da Silva de caótico ¿ uma irônica substituição para a palavra ¿católico¿ numa resposta a jornalistas que acompanhavam seu desembarque em Roma, no último dia 5 ¿ não foi uma gafe isolada na biografia de Dom Eusébio Oscar Scheid. Foi a mais recente, e muito provavelmente a mais grave, mas o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro já havia cometido outras no relativamente curto período à frente de uma das duas mais importantes arquidioceses do país. Ao participar de um simpósio no Sumaré, Dom Eusébio não mediu sua reação a um atraso da então governadora Benedita da Silva:

¿ Ela deve estar arrumando o cabelo ¿ brincou.

O comentário sobre Benedita não chegou a ser uma bomba ¿ diferentemente das críticas a Lula. Tanto mais grave que não há registro, pelo menos na História recente do país, de um bispo com tal poder eclesiástico ter desafiado tão abertamente, e de modo tão contundente, um presidente da República. Nem mesmo na ditadura militar ¿ durante a qual não foram raros os choques de parte da Igreja com os generais-presidentes devido a flagrantes desrespeitos aos direitos humanos ¿ se registrou tal contundência de um prelado do alto clero brasileiro ao manifestar sua discordância com atitudes do chefe de Estado.

Intervenção de Dom Cláudio Hummes afasta crise

As duras e pouco diplomáticas palavras de Dom Eusébio acenderam o pavio, mas a crise não explodiu graças ao arcebispo de São Paulo, Dom Cláudio Hummes, que tomou para si o papel de bombeiro. Com o prestígio de quem chegou a Roma para os funerais de João Paulo II apontado por especialistas em Vaticano como um dos favoritos para assumir o Trono de Pedro, Dom Claudio procurou jogar água na fervura:

¿ Lula é um cristão ao seu modo. É um católico ao seu modo. Ele já comungou comigo. Para mim, é católico como todos os outros católicos do Brasil ¿ afirmou.

Dom Eusébio entendeu a sutil reprimenda e emitiu uma nota, tentando explicar suas palavras: ¿(...) nas matérias de fé, de moral e de ética da nossa Igreja ele me parecia mais confuso, ambíguo (`caótico¿) do que lídimo e claro, isto é, não suficientemente católico¿, justificou o arcebispo do Rio.

Nem conservador nem progressista

Há quem veja na confusão de Dom Eusébio com as palavras não uma opção preferencial pela polêmica, e sim a manifestação de um espírito até certo ponto provinciano. Natural de Joaçaba (SC), ele se formou em teologia pela Universidade Gregoriana, em Roma, e foi ordenado padre em 1960. Dava aulas em Taubaté (SP), quando, designado bispo em 1981, foi nomeado pelo Papa João Paulo II para a prelazia de São José dos Campos, no interior de São Paulo. Em 1991, foi para a Arquidiocese de Florianópolis, onde ficou até vir para o Rio substituir Dom Eugenio Sales. Esse suposto espírito provinciano pode não ter ficado tão em evidência em sua passagem por Santa Catarina. Mas talvez Dom Eusébio tenha demorado a entender a liturgia da Arquidiocese do Rio, que tem exigências muito mais complexas, com as idiossincrasias de uma região onde convivem as mais díspares realidades políticas, econômicas e sociais.

Dom Eusébio por Dom Eusébio: ele não se considera conservador e tampouco progressista ¿ apenas para seguir as distinções mais em voga entre as posições do alto clero.

¿ Como é a imprensa que divide a Igreja entre conservadores e progressistas, basta criar um patamar intermediário, ou seja, um meio-termo ¿ explica, ao se definir como moderado.

Mas suas posições, notadamente a partir do momento em que assumiu a Arquidiocese do Rio, aproximam-no nitidamente da parte da Igreja que comunga com os princípios mais tradicionais do catolicismo. Teologicamente, seu perfil não o distingue muito das posições de seu antecessor no cargo, Dom Eugenio. Mas, se comungam no perfil teológico, os dois arcebispos têm uma grande diferença de temperamento e de métodos que os distancia.

A nomeação de Dom Eusébio para a Arquidiocese do Rio foi uma surpresa ¿ principalmente para Dom Eugenio, que, segundo se afirmou na época, esperava fazer seu sucessor. Amigo de João Paulo II e respeitado em Roma a ponto de, nos funerais do Papa, ter sido um dos três cardeais em todo o mundo presentes na cerimônia privada em que o corpo do Pontífice foi posto no caixão, antes do funeral, Dom Eugenio tinha todos os motivos para crer que a primazia de escolher quem lhe sucederia seria acolhida no Vaticano.

Pode-se dizer que medidas do novo arcebispo depois de assumir a arquidiocese justificariam supostas resistências de Dom Eugenio ao nome do seu sucessor: Dom Eusébio não só afastou muitas pessoas ligadas a Dom Eugenio como substituiu algumas delas por nomes que não eram vistos com bons olhos por seu antecessor. Particularmente esse movimento de pessoal teria magoado o arcebispo do Rio, que num gesto emblemático deixou o protocolo de lado e não saiu da casa do Sumaré. A relação entre os dois hoje pode ser definida como fria ¿ e há quem veja nisso um progresso, pois já foram tensas.

O episódio das críticas a Lula ainda não esfriou totalmente, embora Dom Cláudio tenha entrado no circuito para tentar esvaziar seu conteúdo potencialmente explosivo. A nota de Dom Eusébio justificando suas palavras pode contribuir também para reduzir sua importância. E o próprio presidente, ao reagir elegantemente ao ataque, negou-se a cevar a crise. O funeral do Papa, por sua grandeza, pode ofuscar o tema nos próximos dias. Aí sim, com os personagens principais de volta à rotina de seus afazeres no Brasil, é que se terá a medida do efeito que a gafe de Dom Eusébio terá na relação entre o governo brasileiro e a Igreja ¿ ou, mais localizadamente, entre o governo e a Arquidiocese do Rio.