Título: TORTURA E MORTE, EM NOME DA DEMOCRACIA
Autor: IGNÁCIO CANO
Fonte: O Globo, 11/04/2005, Opinião, p. 7

As reiteradas declarações do presidente dos EUA anunciando seu objetivo de expandir a liberdade e a democracia no mundo, à força se preciso, e suas ameaças ao Irã e à Síria são um presságio de tensão internacional, de confrontação, de tudo menos de democracia.

Não se trata apenas de que, em princípio, a liberdade não possa ser imposta pela força e deva crescer com raízes próprias. Nem do estado de conflito generalizado e permanente a que uma verdadeira tentativa de exportar a democracia pela força conduziria ao mundo.

Trata-se, sobretudo, de que a tal tentativa de impor a democracia como objetivo fundamental é simplesmente falsa, pois a prática tem sido diferenciar entre as ditaduras que devem ser toleradas, e inclusive apoiadas, e aquelas que devem ser combatidas e exterminadas. Tudo isso, de acordo com os interesses dos EUA e não da democracia.

Essa é uma linha tradicional da política externa americana, desde muito antes dos tempos em que Jeanne Kirkpatrick dividia as ditaduras durante a Guerra Fria entre governos autoritários, amigos, e governos totalitários, inimigos. Assim, toda a guerra atual contra o terrorismo parte da cooperação com ditaduras amigas, como o regime de Musharraf no Paquiistão ou as monarquias absolutas do Golfo Pérsico.

O planejamento militar e logístico da Guerra do Iraque só foi possível com a colaboração dos regimes ditatoriais da área, que reprimiram os protestos das suas populações majoritariamente contrárias à guerra. Na Turquia, o país muçulmano mais democrático, o Parlamento negou a autorização para a entrada das tropas americanas que iriam atacar o Iraque pelo norte, conforme já tinha sido negociado com o governo.

Afinal, a democracia implica não apenas a escolha dos governantes por sufrágio universal, mas a aplicação da lei a todos por igual e a defesa do estado de direito. Isto significa respeito ao direito internacional e o fortalecimento dos mecanismos multilaterais. Nada mais distante disso que a disposição do governo americano de atacar unilateralmente os países que bem entende de forma preventiva.

O comportamento recente do governo de Washington, longe de promover a democracia, a desacredita aos olhos de milhões de pessoas no mundo, que a percebem simplesmente como um conceito usado discricionariamente pelos mais fortes para impor sua vontade.

Desde o ocaso dos impérios ibéricos, cuja legitimação era de cunho religioso, os impérios posteriores tentaram disfarçar o seu apetite revestindo-o de missão civilizadora. Os colonizados, no entanto, não têm muitas dúvidas sobre as reais intenções da metrópole e costumam experimentar o grau de autoritarismo com que a suposta civilização trata os ¿bárbaros¿ que não se submetem.

Ainda mais grave, o governo americano que pretende lançar uma cruzada pela democracia está socavando os pilares mesmos da civilização ocidental, mantendo pessoas presas sem cargos e sem acesso ao Judiciário e permitindo a tortura sistemática como método de interrogatório em Guantánamo, no Iraque e no Afeganistão.

O último passo nessa espiral dos horrores está representado pelo artigo recente na revista ¿Newsweek¿, que relata que o Pentágono está considerando a opção de criar esquadrões da morte iraquianos para exterminar os membros da resistência, ao estilo dos que deixaram um rastro de milhares de mortes em El Salvador nos anos 80.

O último relatório de Human Rights Watch revela como as novas forças de segurança iraquianas, criadas e treinadas pelos ocupantes, usam a tortura de forma habitual. Mas, tudo bem, agora tortura-se em nome da democracia.

O caso mais notório de avanço democrático no mundo muçulmano é a Turquia, especialmente após a estratégia de condicionar a integração na Europa à consolidação da democracia no país.

Se o Ocidente realmente quer expandir a democracia, basta condicionar os investimentos e o comércio ao desempenho democrático dos governos para gerar um impulso positivo. A combinação de bombas, arbitrariedade e hipocrisia certamente não conseguirá o mesmo resultado e pode ainda produzir o efeito contrário.